“A coisa não é do jeito que tava indo não!”

Como é a rotina dos agricultores e produtores frente ao novo coronavírus e por que podemos dizer que eles já são há tempos mensageiros de um novo mundo possível – e cada vez mais urgente.

Foi Seu João Pimenta, do alto dos seus 63 anos, quem disse a frase do nosso título. E pelo visto não é só ele que tem esta opinião. Além de ser um sentimento comum entre as mais variadas pessoas – de que era preciso mudar o mundo como o conhecíamos – é praticamente um consenso entre os analistas sociais que o novo coronavírus está vindo “acelerar futuros”. A constatação se dá não só em relação ao aceitamento do trabalho online, à proliferação de lives ou à disparada do comércio virtual, mas também à necessidade da valorização dos produtos regionais e de uma alimentação sem venenos, que promova a saúde e ao mesmo tempo preserve a biodiversidade. Dentro deste panorama, olhar para a realidade dos pequenos produtores, suas demandas e seus sonhos é imperativo, afinal mais de 70% dos alimentos são produzidos pela agricultura familiar, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

Apesar de fundamentais, os agricultores e agricultoras, sejam do campo ou da cidade, já enfrentavam adversidades como a falta de políticas públicas de incentivo e assistência social ou de de preço justo para sua produção, dentro do comércio convencional. Com o novo coronavírus apareceram outros desafios.  A agricultora Amanda de Carvalho, de 34 anos, concorda que foi difícil sim se acostumar a usar a máscara nas mais variadas situações, mas que complicado mesmo é ver vários pequenos agricultores sem ter como escoar sua produção com a proibição de diversas feiras. Amanda mora no Brejal, bairro de Petrópolis que concentra centenas de produtores rurais: “Além disso ainda tem muito cliente que desconfia se a gente está lavando tudo certinho ou não e quem tem medo de sair na rua pra comprar os produtos”, desabafa.  

Seu João comenta que o isolamento também é uma dificuldade: “Na roça é tranquilo, não temos contato, mas quando precisamos sair é muito complicado, por isso mudamos bem rápido e já estamos sempre com a máscara, usando álcool e lavando a mão o tempo todo”. Ele reduziu a quantidade de vezes que sai para vender e não faz mais a Feira da Glória. “A gente se sente preso, mas precisamos deste sacrifício para não trazer o vírus para dentro de casa”, conta ele se referindo a sua mãe, que tem 83 anos anos e à esposa. As duas – e também Seu João – têm problemas de saúde, como diabetes ou pressão alta. 

“Aqui ninguém tem plano de saúde”, relata Amanda sobre a realidade no Brejal. Seu João confirma: “Nenhum dos agricultores que conheço tem plano de saúde, estamos na linha de frente e muitos somos grupo de risco. Nosso medo é ir para uma fila de hospital sem assistência, sem nada”, denuncia. E complementa: “Por isso o que mais mudou mesmo foi o nosso psicológico”.

Esse contexto de fragilidade dos pequenos agricultores frente a nova pandemia se expressa também em outras áreas. O auxílio emergencial só pôde ser acessado por agricultores já inscritos no Cadunico – cadastro social do governo federal – enquanto todos os outros amargam uma demorada espera. “Nem o governo federal nem o estadual estão ajudando como deveriam”, afirma Seu João. Outro exemplo, segundo ele, são as feiras, que chegaram a ser desmarcadas na noite anterior, quando os alimentos já estavam todos colhidos e os agricultores precisaram expor sua produção no chão, pois as barracas foram dispensadas. 

Agricultura familiar e comida saudável: o futuro está na mesa 

Apesar das dificuldades e desafios inéditos que a pandemia trouxe para a agricultura familiar, é impressionante notar como muitos dos valores que estão se apregoando como fundamentais para um mundo pós-coronavírus já estavam presentes no dia a dia destas famílias e de seus parceiros. 

A solidariedade é um deles. Para ajudar os vizinhos que tiveram suas feiras canceladas, Amanda por exemplo diz que está ajudando a recolher o excedente para redistribuir: “Nós que temos muito cliente certo e participamos da cesta do Meu amigo tem um sítio, pegamos um pouquinho com cada um, para as pessoas não perderem o que colheram”, explica. 

Amanda de Carvalho e Daniel Perico mostram seus pães orgânicos,
produzidos no Brejal, bairro de Petrópolis (RJ)

Valores éticos de comércio justo também já eram premissas da agricultura familiar: “Nós mantivemos os mesmos preços desde o início, o pé de alface que tava R$3 reais continuou R$3 reais, ninguém está se aproveitando da situação, diferente de grandes mercados que viram o medo das pessoas que estavam estocando alimentos e aumentaram tudo”, denuncia Seu João.

Encarando a pandemia de frente, muitas pessoas começaram a questionar seus modos de vida e a se  preocupar mais com o outro, com o fortalecimento de laços comunitários, com a sua saúde e também com sistemas de consumo que promovam saúde nos mais variados ambientes. Por isso os alimentos orgânicos e agroecológicos estão sendo cada vez mais procurados desde o início das recomendações de isolamento social. 

Seu João diz apesar de não conseguir ficar inteiramente feliz com o aumento da demanda, visto que o motivo deste crescimento foi uma doença, o coronavírus, esta crise demonstrou que as pessoas começaram enfim a mudar suas escolhas. Amanda concorda: “Acredito que as pessoas passaram a dar mais valor sim ao alimento orgânico; muitos que não conheciam ou achavam que era muito caro passaram a comprar e pelo WhatsApp se interessam e nos perguntam como são plantadas e como cuidamos das plantas”, revela. 

Questionado sobre o futuro, Seu João diz ter fé que os pequenos produtores serão mais valorizados:  “Antes muitos queriam a alface mas não estavam nem aí pra saber se nós, agricultores, estávamos bem, não queriam saber que horas acordamos pra cuidar daquele pé de alface, o amor que colocamos naquela planta, que é totalmente diferente, de um agronegócio colocando veneno de avião, porque a gente conversa com a lavoura, a gente bota carinho, fica triste se ela não crescer”, diz ele ao desenhar diferenças fundamentais do consumidor que conhece e respeita quem produz seu alimento.“Mesmo com toda dificuldade, vamos poder tirar algo bom, que é as pessoas pensarem mais nos outros, do que pensar em comprar coisas fúteis”, aposta Seu João. E Amanda finaliza: “Esperamos um mundo melhor como seres humanos, com muito mais amor”.