O alimento como fruto da amizade

Como um casal e seus amigos transformaram o sonho de uma agricultura mais saudável e justa em uma empresa de entregas de cestas de orgânicos.

“Você tem algum amigo que tenha um sítio?”, “Você conhece alguém com um sítio pra produzir orgânicos?”. Foram com perguntas como estas que Fabiana Sardinha e Ricardo Terzella começaram a dar vazão ao sonho de produzir alimentos sem veneno, em 2015. O casal já não sentia motivação suficiente nos seus trabalhos: ele, apesar de formado em Agronomia, vinha trabalhando na área da Tecnologia da Informação, e ela formada em Comunicação e Marketing, trabalhava em uma multinacional do ramo de eventos. Eles contam que, apesar de estarem felizes e satisfeitos economicamente com suas profissões, sentiam aquele incômodo de que faltava alguma coisa, de que gostariam de contribuir de forma mais efetiva para o que consideravam “um mundo melhor”. Após muita reflexão, tomaram coragem de pedir demissão de seus empregos e investir no sonho de produzir alimentos.

“A gente fazia essa pergunta se algum amigo tinha um sítio, porque ouvia falar de muitas histórias de pessoas com sítios parados, seja porque ganharam de herança ou porque não conseguiam aproveitar a área toda e, como não tínhamos dinheiro para comprar um sítio só pra gente, encontramos este caminho pra poder plantar”, conta Fabiana. O sonho fazia sentido porque unia a experiência deles em gestão, comunicação e TI, a paixão de Fabiana pelos saberes ancestrais de mestres e mestras da cultura popular, com quem ela já trabalhava em paralelo, todos muito relacionados à terra, e a certeza de Ricardo de que os orgânicos podiam ser uma alternativa viável para o pequeno agricultor: “Eu já considerava que o orgânico era uma ótima saída, agregando valor ao produto, por meio de uma venda mais direta possível”. 

Eles relatam que este período foi muito difícil, tanto por este contato com o contexto de abandono do campo, quanto pelas dificuldades práticas que enfrentavam na lavoura, sobretudo pelo fato de morarem na cidade e cultivarem alimentos no interior. Apesar disso, a experiência foi amadurecendo a valorização da agricultura familiar – uma marca hoje da empresa – e, como não poderia deixar de ser, também rendeu episódios com boas risadas. Ricardo lembra quando ele e Fabiana pegaram uma área para capinar junto com outros dois homens da roça, moradores do local: “A gente estava se achando, porque percebemos que estávamos capinando mais rápido que eles, ficamos todos bobos, mas o resultado foi que no fim do dia os dois foram embora super bem e eu e Fabi ficamos meses com dores nas coluna”, diverte-se Ricardo. 

O casal começou então a plantar e, neste período que foram agricultores, Fabiana recorda que puderam conhecer a realidade da roça de forma mais profunda: “Vimos de perto o êxodo rural dos jovens que abandonavam a agricultura, a falta de assistência técnica para os agricultores, a contaminação por agrotóxicos, a falta de subsídios e fomos percebendo que era urgente mobilizar pessoas para mudar esta realidade”. 

Quando fizeram a primeira colheita, juntaram produtos de vizinhos, a esta altura já considerados amigos, que eram os agricultores dos outros sítios e saíram pra entregar no Rio de Janeiro as primeiras 50 sacolinhas, “todas pra amigos”, como pontua Fabiana. “Saí de casa de manhã, sem nem saber onde parar o carro direito e fui pra Copacabana começar a distribuir as encomendas”, conta. 

Apesar de um aparente amadorismo, os clientes que acompanharam este início, já sentiam que tinha algo diferente. A cliente Gloria Micaelo testemunhou a linha do tempo da comercialização dos orgânicos no Rio de Janeiro, desde quando “nem tinham selinho”, brinca. Ela conta que quando seu filho nasceu, em 1987, começou a procurar mais alimentos saudáveis para a família e essa sua busca resume bastante a trajetória dos orgânicos na cidade grande: “Era muito difícil de achar, a gente precisava ficar atrás de alguém que plantava ou que trouxesse da roça e quando surgiu no supermercado era pouca oferta e ainda caro, aí começaram as feiras e os grupos de internet, onde se ofereciam alimentos, mas tudo ainda sem prazo exato ou formalidade”, explica. Gloria descobriu nestes grupos os contatos de Fabiana e Ricardo, com quem compra até hoje. Como trabalha com a formação de empresas, dando consultoria para novos empreendimentos na área de planejamento, ela diz que seu olhar técnico captou desde o início que naquelas entregas já se podia notar algo que se contrapunha ao amadorismo dos outros grupos: “Eu vi um profissionalismo desde o início, eles tinham o viés de fazer tudo planejado, direitinho, com muita pesquisa, ouvindo a aceitando feedback no atendimento, então senti segurança, pois vi que ali era um negócio justamente nos modelos que eu orientava meus clientes a desenvolver”, elogia. 

Tecendo uma cesta de histórias 

Um outro diferencial desde este início, foram as histórias que traziam do campo e encantavam vários clientes. O casal Tomás Gorham e Gabriela Santos, um dos primeiros assinantes das cestas, virou amigo ouvindo as histórias que Fabiana e Ricardo contavam depois das entregas. Tomás afirma que gostou das cestas, porque sempre recebeu informações consistentes e francas sobre os produtos e produtores: “Uma vez perguntei como era o queijo orgânico e num primeiro momento me falaram que não sabiam de tudo, somente que as vacas não eram criadas com remédios convencionais, mas logo na outra semana Ricardo me trouxe toda a informação, cheio de detalhes”, relata Tomás. As histórias tiveram um papel tão fundamental, que até músicas semanais chegaram a ser compostas por Ricardo com amigos, como o artista João Mamulengo, para ilustrar a vida no campo. “Queremos resgatar estas canções e vídeos para colocar no nosso blog”, diz Ricardo. 

O slogan escolhido “Orgânicos com história” sintetizava, assim, o trabalho diferencial do casal com um alimento que ia além de uma comida sem veneno, mas que carregava memória e afeto. Assim como o nome “Meu amigo tem um sítio” que acabou se firmando como o nome do empreendimento, trazendo não só a lembrança daquelas perguntinhas que guiaram o casal lá no início de seus relacionamentos com a agricultura, mas também pontuando o desejo de proporcionar aos clientes uma compra afetiva: “A gente queria passar um sentimento como se a pessoa estivesse comprando de um amigo, de um alimento que chega meio que naquele esquema, ‘ah um amigo do meu pai tem um sítio e a gente trouxe de lá essa banana’; a sensação de estar provando as frutas direto do pé”, ilustra Fabiana.

E haja história! Até a logomarca da empresa é fruto de histórias. A folha da taioba, que lembra um formato de coração e estampa as publicações, também foi escolhida porque apareceu no diálogo com as pessoas que abordavam o casal carregando a planta no meio da cidade. Fabiana conta que quando saíam do carro com as sacolinhas, a folhagem gigante da taioba se destacava e as pessoas imediatamente se aproximavam, perguntando de onde tinha vindo a verdura. “Elas diziam que nunca achavam pra comprar e, geralmente, tinham lembranças de quando moravam na roça e comiam, o que sempre acabava em papo também com vários porteiros” relata Fabiana.

Amizades como solos férteis

Acompanhando o roteiro do empreendimento, fica marcante o valor da amizade como fio condutor dos negócios e como uma qualidade muito relacionada a ela, a confiança, também foi essencial para que o projeto ganhasse novos adeptos. Carla Lopes é uma das clientes mais antigas e diz que esse foi o fator principal para escolher a cesta: “Eu nem pesquiso mais preço em outros lugares, estabeleci uma relação de confiança muito grande com eles, além de ser muito prático de receber e de pagar, o que é importante pra quem tem 3 filhos como eu”. Outra cliente que recomenda de olhos fechados é a artesã Giovana Deppe, que buscou alimentos sem veneno por conta de um problema de saúde com uma das filhas: “No mercado eu sempre desconfiei se os orgânicos eram de fato orgânicos e com esta cesta não tenho dúvida, tudo é maravilhoso e o atendimento tem muita qualidade”. 

O boca a boca e a mídia espontânea fizeram a empresa crescer e hoje as entregas já acontecem 3 vezes na semana para diversos bairros do Rio e de Niterói. Um aplicativo desenvolvido pelo Ricardo – uma síntese do desejo de aliar seu conhecimento em informática com as necessidades da agricultura –  tornou tudo ainda mais prático. Apesar de orgulhoso do aplicativo, muito elogiado pelos clientes, Ricardo diz que a diferença que querem fazer vai muito além: “A gente sempre foi muito crítico, não queremos só parecer que somos diferentes, entendemos que o sistema como tá rodando no mundo não funciona, o que se tem como resultado é miséria e queremos tentar intervir para não reproduzir as assimetrias e as explorações que existem como modelo”, argumenta. 

A sensibilidade para questões políticas e econômicas para além de um interesse por saúde individual também acabou por cativar outros clientes. Foi o que aconteceu com o casal Anita de Moraes e Marcelo Diniz, professores de Literatura que elogiam as cestas por colocarem eles em contatos com alimentos antes desconhecidos como hidromel ou a cúrcuma por exemplo, mas que percebem questões além destas: “Neste estado de um capitalismo globalizado que vive uma grave crise ecológica, as relações menores, não industriais, são extremamente positivas de serem cultivadas”, defende Marcelo.

Ao que tudo indica, esta história já tem potencial para questionar um antigo provérbio e enunciar um novo sentido: amigos, amigos, negócios fazem parte.