Agrotóxicos: o maior componente do agronegócio nacional

O Brasil amarga hoje o posto de maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Ao mesmo tempo, 81% da população já declarou que considera a quantidade de agrotóxicos aplicados nas lavouras como alta ou muito alta. Confira tudo sobre o uso de agrotóxicos e o mal que eles causam à alimentação.

O que são agrotóxicos

Agrotóxicos são produtos utilizados para “proteger” lavouras de pragas. Podem ser divididos pela praga que combatem ou pelo aspecto do alimento que preservam – como brilho, doçura, dureza do alimento. Entretanto, esses compostos químicos também são venenosos para humanos, impregnando os alimentos que deveriam defender e contaminando quem se alimenta deles.

Doenças causadas por agrotóxicos

“Mas será que pra produzir precisa passar mal?” Esse era o principal questionamento do agricultor José Antônio de Souza, 57 anos, mais conhecido como Neguinho, quando trabalhava na lavoura de batatas no final da década de 80, em Minas Gerais. Contratado por um fazendeiro, colocou em prática conhecimentos da escola federal agrícola onde estudou:

“Infelizmente foi na escola que aprendi a usar veneno, pois meu pai era orgânico por natureza e até 11 anos de idade eu nunca tinha conhecido nem luz elétrica”, conta. O agricultor relata que “passou mal várias vezes no meio daquele veneno todo” e pensava consigo mesmo “Isso não pode estar certo”.

Seu Edvaldo Celestino, hoje com 44 anos, também foi atravessado pelo plantio de batatas em terras mineiras, logo após o fim da “era do marmelo”, na qual trabalhou junto com seus pais, em pequenas unidades produtivas. Edvaldo conta que essa foi a opção que sobrou para as famílias humildes da região: “Pedimos empregos nas fazendas, onde acontecia o plantio de batatas no sistema convencional e lá aprendemos a usar agrotóxicos como o Tordon, o Roundup e até outros mais pesados”.

foto de família de agricultores em meio a fazenda com agrotóxicos
Foto do arquivo pessoal de Seu Edvaldo mostra o pessoal na plantação de batatas

A topografia montanhosa do local não ajudou e somente onde era possível entrar com maquinário o cultivo de batatas conseguiu se firmar. No restante da região, o trabalho manual era pesado, os resultados já não eram satisfatórios e, em meio à crise, muitas pessoas pensaram em abandonar a agricultura.

“Eu também estava a ponto de desistir, quando apareceu uma pessoa da Secretaria de Agricultura, junto com um engenheiro da Emater, e falaram sobre os orgânicos”, relata Seu Edvaldo. A reunião animou a família, que tomou coragem para investir no plantio sem venenos. Pesou muito na decisão uma doença que acometeu o filho do meio de Seu Edvaldo, a hidrocefalia – um acúmulo de líquido nas cavidades internas do cérebro -, que de acordo com um médico na época, poderia ser efeito de contaminação com agrotóxicos.

“Após muitos anos de pesquisa, descobrimos que no caso do meu filho a causa não foi o veneno, mas, na época, regiões próximas relataram casos parecidos de contaminação e doenças e isso tudo fez a gente parar e pensar no que tava fazendo não só com o meio ambiente, mas também com a nossa própria saúde”, reflete Seu Edvaldo.

Neguinho na sua atual propriedade, toda dedicada aos alimentos sem veneno

Na família de Neguinho não foi diferente. Apesar de também não ter um laudo conclusivo, a morte de sua única irmã, em 2006, parecia estar relacionada ao uso de agrotóxicos: “O médico falou pra mim ‘olha, tem 99% de chance deste câncer estar relacionado ao veneno’”, relembra.

O episódio o fez repensar o uso de pesticidas e, no seu caso, a oportunidade para a mudança veio por meio de um japonês que negociou o plantio do “cogumelo do sol” na sua propriedade: “Como o cogumelo era para fins medicinais e não podia ter química, eu aproveitava as soqueiras para experimentar uns plantios, gostei e, na sequência, já me certifiquei como orgânico”, relembra.

Edvaldo, colocando estacas na plantação de tomates orgânicos

O caminho não foi fácil, mas hoje ambos podem comemorar a transição que fizeram para a agricultura orgânica. “A gente não tinha suporte técnico, nem conhecimento de mercado, plantava e acabava perdendo, batalhamos 5, 6 anos e aí sim começou a aparecer mercado”, disse Seu Edvaldo, que hoje também é um dos fornecedores da cesta do Meu amigo tem um sítio.

“Agora eu já sou bem conhecido no mercado”, celebra Neguinho e complementa: “Mas o grande prazer é deixar pro futuro uma terra cuidada, um chão livre de veneno, cheio de vida, pois isso que é o nosso grande legado”, ensina.

Consumo de agrotóxicos no país

Apesar de ser uma trajetória tortuosa, marcada por traumas, hoje Seu Edvaldo e Neguinho podem colher os frutos de plantios saudáveis, que, infelizmente, não são um retrato da agricultura no Brasil. O país é o que mais consome agrotóxicos no mundo, sendo o atual governo responsável pelo lamentável recorde de 475 agrotóxicos aprovados em 2019, contra 450 no ano anterior.

Os pesticidas, presentes na alimentação, no vestuário e, como mostraram pesquisas recentes, na água de centenas de cidades, vêm matando a vida no solo, animais, além de contaminar e adoecer famílias não só no campo, mas na cidade, ficando a carga mais pesada para os trabalhadores rurais em contato direto com a aplicação dos venenos.

Mas nem tudo está perdido. “Nos últimos anos houve uma tomada massiva de consciência da sociedade brasileira, acompanhando uma tendência mundial”, analisa Alan Tygel, membro da coordenação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

Prestes a completar 10 anos, a Campanha é uma articulação ampla da sociedade, composta por organizações do campo e da cidade, em nível nacional, que têm como interesse comum a luta pela produção de alimentos saudáveis.

Lucinéia Freitas, também integrante da Campanha e educadora do MST concorda: “Quando começamos a pautar a necessidade de repensar a liberação de agrotóxicos, isso era um assunto desconhecido da sociedade em geral, mesmo entre os agricultores”. Uma pesquisa realizada pelo IBOPE, em 2016, a pedido do Greenpeace, mostrou que 81% dos entrevistados consideram que a quantidade de agrotóxicos aplicados nas lavouras é alta ou muito alta.

Alan Tygel, integrante do movimento "Agrotóxico Mata"
Alan Tygel em debate promovido pela Abrasco

Por estar relacionada ao uso do solo, a questão dos agrotóxicos mexe com estruturas tão antigas quanto a própria constituição do país e, neste sentido, Alan aponta que a participação de movimentos de luta pela terra, nos anos 2000, foi fundamental. De acordo com ele, “movimentos que pautavam a reforma agrária apenas como divisão de terras, começam a dizer que não basta dividir a terra, é preciso que esta terra seja usada para produção de alimentos saudáveis”.

Outro ganho essencial para o movimento vem sendo a adesão crescente de instituições de pesquisa em saúde. “Hoje temos o envolvimento do próprio INCA (Instituto Nacional do Câncer) estudando o impacto dos agrotóxicos”, destaca Lucinéia. Um estudo inédito da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), feito por pesquisadores da Fiocruz e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), conhecido como Dossiê Abrasco, lançado em 2012 e revisado em 2015, é outro documento essencial para embasar a luta contra os agrotóxicos.

O Projeto de Lei 6670/2016 que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA) é um dos desdobramentos de toda essa movimentação da sociedade.

Lucinéia Freitas coordena uma reunião contra os agrotóxicos no interior do Rio, em 2019
Lucinéia Freitas coordena uma reunião contra os agrotóxicos no interior do Rio, em 2019

Por fim, mas não menos importante, aparecem os grupos urbanos de consumo. Como lembra Alan, basta pensarmos no potencial que é o fato de que 85% da população é urbana, que “muito provavelmente não vai produzir seu próprio alimento mas pode se organizar coletivamente para consumir orgânicos e produtos agroecológicos”, avalia.

Segundo Alan e Lucinéia, se estes mesmos grupos atuarem por mudanças mais estruturais, o fim do modelo baseado em agrotóxicos pode ser mais rápido: “É preciso que as pessoas entendam que o modelo do agronegócio é muito masculino, é branco e tem classe; ele é rico”, denuncia Lucinéia.

Nesse sentido, ela afirma que o consumo é importante, mas não pode tirar o foco do verdadeiro responsável que é o governo, que é quem concede as linhas de crédito, autoriza novos venenos e demarca terras. Alan finaliza: “As experiências urbanas e do campo se complementam, a luta pela produção, pelo consumo e a luta política é que formam um conjunto para avançarmos cada vez mais”.