A urgência dos ciclos orgânicos

As crises alimentar e econômica ampliadas pela pandemia do novo coronavírus impõem velocidade ao debate sobre o uso consciente e sustentável de nutrientes e recursos. Experiências no campo e na cidade trabalham ideias e ações como o aproveitamento total de alimentos e o upcycling para inspirar toda a sociedade na busca de soluções.

Desperdício nunca foi considerado aceitável, assim como os padrões exagerados de consumo, que estão levando o planeta à poluição ou até mesmo ao esgotamento de alguns recursos naturais. No entanto, há momentos onde a humanidade é forçada a dar ainda mais ênfase a estes temas. É o caso do contexto mundial frente ao Covid-19, doença apontada pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Antônio Manuel Guterres, como responsável por agravar a situação de insegurança alimentar e desnutrição. Agravar realmente seria o termo adequado, visto que a situação, segundo a própria ONU já era preocupante, diante de mais de 820 milhões de pessoas que não comem ou passam fome no mundo.

“Aqui também há desperdício, apesar de ser um território de fragilidade”, analisa Ana Santos, agricultora urbana e uma das fundadoras do Centro Integrado da Serra da Misericórdia (CEM), uma associação sem fins lucrativos, que desde 2011 atua no Complexo da Penha. O CEM, em parceria com diversas instituições, vem entregando cestas de alimentos orgânicos e agroecológicos para as pessoas em situação de vulnerabilidade durante a pandemia, mas seu trabalho com alimentação vem de longe. Assuntos como desperdício e aproveitamento “total” de alimentos sempre estiveram presentes: “Precisamos contextualizar tudo e o termo aproveitamento integral não dialoga muito com a nossa realidade de classe aqui, assim como não falamos de sobra nem de reaproveitamento, mas em olhar o alimento como um todo” explica Ana.

Ana Santos em atividade na comunidade

Para a articuladora e culinarista, este olhar para o alimento inclui resgate, ancestralidade e sabor, esse último, para ela, um fator bem objetivo: “Sim, é o tempero da mulher preta e favelada que muitas vezes pode fazer um alimento ser consumido na sua totalidade”, fala ela dando, em seguida, o exemplo do hambúrguer de casca de jaca, que uma amiga resolveu mexer na receita, depois de comer na casa da patroa e considerar a preparação sem graça.

O trabalho de Ana lembra que muitas vezes as pessoas desperdiçam não porque querem, mas porque não sabem o que fazer. A casca da banana verde, que ela começou a fazer compota e a ensinar outras mulheres a prepararem, hoje é presença obrigatória em diversos churrascos na favela, “como se fosse azeitona no molho vinagrete”, conta orgulhosa.

Reutilizar não é jeca; é joia

Se a periferia dá lições valiosas de aproveitamento, o campo não fica atrás. Quem ainda pensa que a roça é um local atrasado, pode se surpreender ao saber que uma das palavras de ordem da moda, o upcycling, faz parte da rotina de uma propriedade rural. A Reserva Botânica das Águas Claras, localizado em Silva Jardim, interior do Rio de Janeiro, a 35 km de estrada de terra da sede do município é coordenado pela bióloga Cecília Freitas, que herdou a propriedade com uma plantação de palmito do seu pai. Apesar de hoje o plantio já ser bem diversificado, o palmito ainda é um dos carros-chefe e sua comercialização gerava muitos resíduos, que mesmo sendo naturais e indo para a compostagem despertaram Cecília para a possibilidade de um novo produto. Ela chamou então sua amiga Mônica Castedo, que possuía experiência com a fibra da bananeira, para iniciarem uma pesquisa com a fibra da pupunha. “Incentivamos a formação do grupo Mulheres da Reserva Botânica, chamando moradoras da fazenda e do entorno com conhecimentos tradicionais, que se dispuseram a aprender a trabalhar com esta nova fibra”, conta Mônica.

Mônica, no alto, à esquerda, e Cecília, a última da direita, no alto com as mulheres da Reserva Botânica tecendo com a fibra do palmito

Por meio deste protagonismo das mulheres rurais e de parcerias com universidade e instituições, conseguiram desenvolver, em 2012, o VegPlac, uma lâmina de base cem por cento vegetal, biodegradável que permite aplicação em vários produtos e projetos e lançaram a Kaapora Design. Nessa hora é que entrou em cena o upcycling, técnica que une criatividade na hora de dar novo uso aos objetos com o objetivo maior de poupar o meio ambiente. A Kaapora firmou parceria com a Rede ASTA e através dela realizam o upcycling de retalhos com estampas da FARM, famosa grife carioca, compondo peças com as placas vegetais de pupunha e mudando o rumo do descarte de diversos retalhos.

“Nosso processo produtivo é todo artesanal e limpo, pela filosofia de preservação e por um plantio orgânico e é lindo ver as artesãs de três gerações, mães, netas e avós, transformando resíduos em produtos”, completa Mônica.

Exemplos como esses, fora do mainstreaming, são prova de uma nova realidade que vem a galope. Se no passado a reciclagem – e todas suas versões de reutilização – podia sofrer preconceito e ser relacionada com a escassez ou o discurso de grupos muito alternativos, cada vez mais ela se mostra como possibilidade de geração de renda  e, sobretudo, como preocupação efetiva com os ciclos de vida e a sobrevivência no planeta.