Você sabe o que coloca no seu prato?

Falta de transparência de informações impossibilita consciência alimentar e reflexão sobre o uso de agrotóxicos

Nos últimos anos, o Brasil observou recordes na liberação de novos agrotóxicos. Além disso, a discussão sobre a votação do Projeto de Lei conhecido como PL do Veneno preocupa especialistas, que temem desregulamentação do setor e menor acesso da sociedade civil ao debate sobre a liberação de agrotóxicos.

Quem nunca ouviu a frase: “Você é o que você come”? Já parou para pensar que, se não sabemos o que exatamente estamos comendo, isso pode acarretar em grandes lacunas na nossa reflexão sobre o que afinal estamos consumindo? É importante relembrar ao consumidor que ele tem direito ao acesso à informação e o Estado tem a obrigação de informar, de maneira ativa e transparente, por mais que os dados em relação ao uso de agrotóxicos sejam pouco acessíveis. Além do impacto ao meio ambiente, quando se fala em orgânicos, também se fala em saúde. Na semana do Dia da Terra, comemorado em 22 de abril, é imprescindível alertarmos sobre as formas de encontrar dados verídicos e conhecer mais a política do agronegócio e como ela se relaciona com o alimento que chega à mesa dos brasileiros.

A intoxicação por uso de agrotóxicos pode trazer grandes consequências, sobretudo aos trabalhadores rurais que fazem a aplicação dos venenos, seja por meio de máquinas, seja por meio de pulverizador costal. Entretanto, a longo prazo, o impacto é sentido na saúde também dos consumidores. Para chegar a essa questão mais profunda, é necessário contextualizarmos o cenário da política ambiental brasileira, que está sendo deteriorada nos últimos anos. O Brasil vem quebrando recordes de liberação de agrotóxicos, repetindo uma alta, ano após ano, no número de substâncias nocivas que chegam à mesa dos cidadãos. Em 2019, foram 474 agrotóxicos aprovados. Em 2020, o número conseguiu superar o do ano anterior, com 493 pesticidas liberados. Esse é o maior número documentado pelo Ministério da Agricultura na série histórica, que compila dados a partir do ano de 2000.

Série histórica de registro de agrotóxicos no Brasil. Fonte: Arte/G1 a partir de dados do Ministério da Agricultura

PL do Veneno

O Projeto de Lei Nº 6299/02, conhecido como Pacote do Veneno, agrega diversos projetos sobre agrotóxicos que tramitam no Congresso e, caso seja aprovado, será uma atualização da legislação vigente sobre o uso de agrotóxicos, criada em 1989. A votação deste projeto não é uma novidade e, desde 2002, é discutida. Entretanto, até então não passou por votação no plenário da Câmara dos Deputados. Este ano, com a eleição do deputado Arthur Lira (PP/AL) como líder da Câmera, esta votação foi incluída na lista de pautas prioritárias para a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e, desde então, já é cotada como um dos temas que pode ser foco da casa. O projeto já foi aprovado na Comissão Especial da Câmara em 2018 e é alvo, desde a sua formação, de muitas críticas.

Mas, afinal, o que o PL do Veneno propõe? Entre muitas outras questões, as apontadas como mais perigosas são em relação às mudanças no acesso à informação e nos órgãos responsáveis por regular o setor. O Projeto de Lei determina, por exemplo, a mudança do termo agrotóxico para “defensivo fitossanitário” ou “defensivo agrícola”, o que é visto como uma forma de mascarar a realidade. “Isso é um eufemismo para você se referir a venenos”, afirma Viviane Brochardt, jornalista e autora da tese de doutorado sobre Direito à Informação sobre Agrotóxicos, pela Universidade de Brasília (UnB).

Além disso, o PL propõe que o Ministério da Agricultura seja responsável por centralizar o registro de novos agrotóxicos, o que atualmente é feito em conjunto com a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Em uma audiência pública na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara em 2018, o especialista em Saúde, Ambiente e Sustentabilidade da Fiocruz, Guilherme Franco Netto, opinou contra a aprovação do PL: “No Brasil, ainda com uma subnotificação enorme – porque nós não temos todos os recursos alocados de maneira adequada para fazer vigilância em saúde –, temos crescimento exponencial do número de casos de intoxicação por agrotóxicos, acumulando nos últimos dez anos mais de 100 mil casos, com praticamente 3.500 mortes”, afirmou.

Acesso à informação

Para o cidadão que busca dados sobre a liberação de agrotóxicos ou números de intoxicação, é possível que alguns percalços sejam encontrados pelo caminho. Em relação à intoxicação por agrotóxicos, o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) compila o número de intoxicações por agrotóxico notificadas. Sob responsabilidade da Fiocruz, este sistema utiliza dados de 19 estados brasileiros provenientes de 35 Centros de Informação e Assistência Toxicológica (Ciats). Considerando que o país possui 26 estados e o Distrito Federal e somente 19 deles fornecem dados de intoxicação, este fato já aponta uma subnotificação. É isto que afirma a Organização Mundial da Saúde, que estima que para cada um caso de intoxicação por agrotóxico, existam outros 50 não notificados.

Não é somente por meio dos alimentos que o consumidor pode entrar em contato com agrotóxicos, como revela o mapa sobre a presença de agrotóxicos na água de 2018, organizado pela Agência Pública e Repórter Brasil em parceria com a organização suíça Public Eye. Segundo o mapa, a água de mais de 2.300 municípios possui agrotóxicos, levantamento feito a partir de dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde. O Sisagua utiliza termos técnicos de difícil entendimento e alguns dados foram obtidos pela reportagem da Pública a partir de um pedido pela Lei de Acesso à Informação. Meses depois, o Ministério da Saúde passou a divulgar os dados para acesso público. O levantamento da Pública revelou que 1 em cada 4 cidades brasileiras possuem uma mistura de 27 agrotóxicos encontrados na água. De acordo com a reportagem, entre os 27 agrotóxicos do coquetel encontrados em 1.396 municípios, “16 são classificados pela Anvisa como extremamente ou altamente tóxicos e 11 estão associados ao desenvolvimento de doenças crônicas como câncer, malformação fetal, disfunções hormonais e reprodutivas”, informa a Agência Pública.

Mapa interativo Por trás do alimento. Fonte: Agência Pública, a partir de dados do Sisagua.

Outra base de dados importante para o entendimento do tema é o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), integrante do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), coordenado pela Anvisa. As divulgações atualmente são feitas por período e não anuais, o que pode impedir alguns tipos de comparativos. O último lançamento, em 2019, compilou dados de 2017 a 2018. Neste relatório, foram encontrados 122 agrotóxicos em 51% dos alimentos e foram consideradas insatisfatórias 23% das amostras. De um total de 4.616 amostras de alimentos, foi analisada a presença de 270 agrotóxicos, que não chega nem perto do total de substâncias liberadas no país. Para fins comparativos, vale mencionar que, em 2021, o Brasil possui 3197 produtos agrotóxicos liberados.

Participação social

Se existe uma dificuldade de acesso da população aos dados sobre o agrotóxico, por outro lado a sociedade civil demonstra vontade de participação. Um dos exemplos é o Projeto de Lei Nº 6670/2016, que busca instituir a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos – PNaRA. A PNaRA foi uma sugestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) apresentada à Comissão de Legislação Participativa, que virou um projeto de lei. Diferentemente do “Pacote do Veneno”, a PNaRA propõe que a sociedade esteja presente na discussão. “Além de propor a redução gradativa do uso de agrotóxicos, o projeto também pretende reativar espaços de participação social, transparência e disponibilidade das informações para a sociedade, informações que, desde 2016, estão sendo apresentadas cada vez com mais opacidade”, afirma Brochardt.

Além do âmbito legislativo, a sociedade civil também está cada vez mais amparada por veículos de mídia independente ou de jornalismo investigativo. Em 2019, a Agência Pública em parceria com a Repórter Brasil lançou um perfil no Twitter chamado Robotox. Esse robô é responsável por publicar, no Twitter, qualquer nova liberação de agrotóxico, o número total de agrotóxicos aprovados e seu grau de toxidade, informações disponíveis através de consulta ao Diário Oficial da União. Em 14 de maio de 2019, dia em que a Agência Pública noticiou a criação da iniciativa com a Repórter Brasil, foi divulgado que o objetivo é uma maior transparência ao cidadão, com informações oficiais sobre o tema. Para ter informações diárias sobre a liberação de agrotóxicos, basta seguir a conta @orobotox, ou www.twitter.com/orobotox.