A comida que é cheia de verdades

Um termo que anda em voga quando se fala em alimentação saudável é a expressão “comida de verdade”, cuja hashtag nas redes sociais já alcançou mais de 7 milhões de publicações. Descubra por que seu significado extrapola índices nutricionais e se relaciona com diversas outras bandeiras como a equidade de gênero e os circuitos curtos de comercialização.

Quando ouvimos falar sobre uma comida de verdade, necessariamente se coloca a questão de que existiria, em contrapartida, uma comida de mentira. E foi a esta conclusão que diversos pesquisadores do mundo todo chegaram ao se perguntarem quais seriam os principais motivos para o crescimento da obesidade: o fato de que as pessoas vêm se alimentando de uma imitação de comida.

Simone Albertino exibe sua comida de verdade

O grau de processamento dos alimentos começou a ser usado pelos pesquisadores como base para identificar esta imitação, onde os ultraprocessados representariam o maior perigo. No Brasil, o Guia alimentar para a população brasileira, publicado em 2006 e disponível na internet, reúne alguns destes estudos. O guia descreve os alimentos ultraprocessados como aqueles feitos na fábrica, combinando ingredientes que ninguém tem na cozinha de casa, como gordura vegetal hidrogenada, xarope de frutose, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos. Exemplos bem populares são as pizzas congeladas, os refrigerantes, os biscoitos recheados e os temperos prontos.

Apesar do malabarismo retórico da propaganda contida nas embalagens, que anunciam produtos “light”, “baixo sódio” ou até mesmo “saudáveis”, estes alimentos não são bons pra saúde. A combinação de açúcar, gorduras, óleos e sal em grandes quantidades para obter algo como um hipersabor ainda estimulam seu consumo exagerado. Um documento organizado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), publicado em 2019 reuniu evidências científicas de que estes alimentos ultraprocessados têm sua natureza e qualidade afetados, causando obesidade e doenças crônicas.

Não podemos ficar só no foco nutricional”

Como se os problemas para a saúde não fossem suficientes, a Professora da UFRJ, Vanessa Schottz, alerta que “não podemos ficar só no foco nutricional”. Apesar de integrar o corpo discente justamente da Faculdade de Nutrição, as pesquisas da Professora mostram que o problema da oferta crescente de produtos ultraprocessados vai muito além de ingredientes ou tabelas nutricionais.

Vanessa explica que, à medida que estes alimentos são praticamente todos produzidos e distribuídos por grandes corporações, a questão está ligada ao sistema alimentar global: “A comida que imita a comida de verdade promove uma desconexão entre produção e consumo, transformando ela em uma mercadoria distanciada da sua origem e da sua identidade”, denuncia. O próprio Guia Alimentar que citamos mais acima toca neste tema ao afirmar que “as formas de produção, distribuição, comercialização e consumo (de alimentos ultraprocessados) afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente”

A professora Vanessa Schottz defende que a comida de verdade é uma questão política

Questões como essas são discutidas no Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, do qual a Professora faz parte, e que ajudou a construir o conceito de comida de verdade na “V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional sobre Comida de Verdade no Campo e na Cidade, por Direitos e Soberania Alimentar”. A conferência, realizada em 2015, em Brasília, reuniu mais de duas mil pessoas, representantes das três esferas de governo e da sociedade civil. Resumindo as ideias principais do manifesto final da conferência, vemos que a base para uma comida ser considerada comida de verdade é ela ser produzida pela agricultura familiar, levando em consideração a sustentabilidade e os conhecimentos tradicionais, além de ser livre de agrotóxicos, de transgênicos, de fertilizantes e de todos os tipos de contaminantes.

Vanessa ressalta que uma conexão trazida no manifesto e que merece muita atenção é que a comida de verdade está ligada à agroecologia e ao feminismo. Ela defende que pra se falar em“comida de verdade”, é preciso enfrentar dinâmicas desiguais. A agroecologia, pela sua estreita relação entre sociedade, natureza e cultura representa esta luta a favor de um novo sistema alimentar.

“Já as mulheres desempenham um papel extremamente importante em todas as etapas que constituem os sistemas alimentares, desde a produção e preparo até o consumo dos alimentos”, defende Vanessa. Ela lembra que apesar disso, infelizmente, este sistema alimentar global tem como base desvalorizar, invisibilizar e explorar estas mulheres e que apoiar a comida de verdade passa por valorizar processos onde haja protagonismo das mulheres e equidade de gênero.

Ainda em relação às mulheres, é fundamental lembrar que o início da oferta de produtos industrializados ultraprocessados ocorreu num período em que elas começaram a entrar no mercado de trabalho, dedicando menos tempo para a cozinha. Apesar de começarem a sofrer com a dupla jornada de trabalho, o fato de serem as principais responsáveis pela alimentação das famílias, se refletiu na qualidade da comida servida. Lamentavelmente, o que poderia servir para valorizar mais o trabalho das mulheres, ainda aparece como motivo para culpá-las ou sobrecarregá-las.

Circuitos para a comida de verdade

Dentro das questões que envolvem o sistema alimentar global atual, quem está no campo, produzindo, traz elementos fundamentais para o debate. O produtor rural André Gomes, de 56 anos, dono de um sítio granjeiro em Miguel Pereira, região serrana do Rio de Janeiro, acredita que um grande nó que precisa ser desfeito para que a comida de verdade chegue a mais pessoas é a logística de distribuição nos centros urbanos. Para ele, é preciso investir muito nos circuitos curtos de comercialização para que esta comida chegue fresca aos consumidores e cada vez em maior quantidade: “O comércio tenta empurrar o que consegue comprar em grande escala e o problema da gente, de quem produz orgânicos, é que não temos escala, então fica difícil pra gente concorrer”, analisa.

Da Queijaria Judith de Seu André saem hoje para as cestas de orgânicos do Meu amigo tem um sítio queijo minas frescal, queijo minas padrão, queijo mussarela cavalo (mussarela maturada), coalhada, leite e ricota para o Rio de Janeiro. “O alimento fresco é o mais saudável, cheio de valores nutritivos de verdade e é esse que deve chegar para as pessoas”, apoia ele.

André Gomes, um produtor de comida de verdade

Ele também concorda com o escritor Michael Pollan, que escreveu em seu livro “Em defesa da comida” que comida de verdade é “tudo que nossos avós reconheciam como comida”: “Hoje ninguém come mais mocotó, o irmão mais velho não amassa banana para o irmão mais novo, ele abre a geladeira e come um iogurte cheio de corantes e açúcar”, queixa-se. André conta que na sua infância a geladeira era pequena, com um motor amarrado em cima destinada somente ao creme de leite, enquanto as refeições eram todas frescas.

Uma das clientes mais antigas do Meu amigo tem um sítio, Simone Albertino, diz que com a pandemia do novo coronavírus tem dedicado mais tempo à cozinha e que o hábito de receber as cestas toda semana tem estimulado a preparação de novos pratos, mas todos com um gostinho especial de boas memórias: “Estou voltando a me alimentar como quando criança, com a minha mãe”, relembra ela. Simone conta que, há alguns anos, seu médico pediu que ela iniciasse uma dieta baseada justamente em “comida de verdade” e agora ela comemora: “Aquele feijão com arroz voltou a ser muito apreciado e necessário e, acompanhado com legumes e hortaliças fresquinhos, é mais que suficiente para uma refeição feliz”.