Chocolate com gosto de ética

Seu chocolate pode ter sido produzido com mão de obra infantil análoga à escravidão

Algumas das maiores multinacionais produtoras de cacau são citadas em ação que relaciona a produção de chocolate com o trabalho infantil em condições análogas à escravidão e, neste cenário desumano, está na hora de mudarmos a forma que consumimos. Conheça também o Instituto Origem, responsável pela produção do chocolate Onveg, que produz de forma ética e sustentável em São Thomé das Letras, Minas Gerais.

Texto por Ana Luísa Vasconcellos

Você provavelmente, alguma vez na sua vida, já comeu algum chocolate produzido por uma das grandes empresas multinacionais do setor. A Nestlé é uma das clássicas marcas que fazem parte do cotidiano brasileiro, atuando no país desde 1876, e até mesmo a Hershey, que chegou ao Brasil há menos tempo, em 2002, pode ser encontrada nas prateleiras de qualquer supermercado. As multinacionais Nestlé, Hershey, Mars, Cargill, Mondelēz, Olam e Barry Callebaut foram processadas em uma ação nos Estados Unidos (EUA) que liga a produção de chocolates ao trabalho infantil em condições análogas à escravidão, em fazendas da Costa do Marfim, na África. Instaurada em fevereiro deste ano, a ação civil pública, ajuizada na Justiça Federal dos EUA, é de autoria da organização de direitos humanos International Rights Advocates (IRA), responsável por elaborar o processo, que ainda não chegou a uma sentença.

Em face a um cenário pouco esperançoso para a mudança nos padrões de produção, consumir localmente pode ser a solução para buscar empresas com práticas de trabalho ético e justo, além de sustentável. Esta ação judicial coloca em prova o que diversas organizações de direitos humanos vêm defendendo há décadas: é necessário prestar atenção na forma como as grandes cadeias produtivas adquirem sua matéria-prima. Encarar essa violação dos direitos humanos nos torna, mais do nunca, responsáveis por buscar alternativas para o que consumimos. Um dos nossos produtores parceiros, o Instituto Origem, faz toda a produção de pastas e chocolates veganos da empresa Onveg. Localizados em São Thomé das Letras, Minas Gerais, os produtores buscam aplicar na produção práticas completamente diferentes das exercidas mundialmente nesta indústria, utilizando o trabalho simbiótico com a natureza.

“A gente entra na contramão dessa maneira de produção das multinacionais. O cultivo com o qual trabalhamos é o sistema de cabruca, ou seja, o consórcio do cacau dentro da própria floresta. O cacau é uma planta que ocupa o estrato baixo, sendo protegida pela sombra das árvores nativas. Trabalhamos com duas plantas, um cacau nativo da Amazônia, de ótima qualidade e com características frutadas, e outro cacau que vem da Bahia, sendo produzido por Ernst Gotsch, considerado referência mundial na agricultura sintrópica”, afirma Ramon Senra, presidente fundador do Instituto Origem.

Multinacionais em foco

Em nota divulgada no Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, 11 de junho, a International Rights Advocates afirma que gigantes multinacionais ainda hoje controlam as plantações de cacau onde crianças são escravizadas. “As pessoas continuam a marchar para livrar nossa sociedade dos vestígios da escravidão, mas no Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, 1,56 milhão de crianças (estimativa do Departamento do Trabalho) da Costa do Marfim e de Gana ainda produzem cerca de 60% do cacau mundial a cada ano como resultado de trabalho forçado”, afirma a nota da organização. Confira a nota completa neste link.

Essa não é a primeira vez que marcas de grande porte são citadas em uma ação. Nestlé e Cargill já haviam sido convidadas a prestar esclarecimentos em um processo no ano de 2005. “Nos últimos 15 anos, o caso foi amarrado no sistema judiciário, permitindo que as empresas mantivessem o que consideravam benéfico para a escravidão infantil, enquanto seu exército de advogados prolongava o prazo”, afirma IRA em nota. Desta vez, as gigantes mundiais da produção de chocolate foram diretamente acusadas pelo sequestro de oito jovens de Mali, África Ocidental, que afirmam ter sido levados à Costa do Marfim, sendo forçados a trabalhar em fazendas de cacau em condições perigosas e degradantes.

Chocolate com ética

Os agricultores normalmente precisam de diversos intermediários para vender o seu cacau às empresas e, como não há possibilidade de investir em máquinas ou em técnicas mais sustentáveis, trabalham sobretudo utilizando um facão. Algumas empresas produtoras de chocolate estão buscando uma forma de garantir que possam rastrear a origem de sua principal matéria-prima, o cacau, porém os esforços estão longe de atingirem o objetivo. Em julho de 2021, a revista Exame publicou uma reportagem sobre a iniciativa das empresas multinacionais Tony’s Chocolonely e DP World de adotar a tecnologia blockchain, que atribui um número exclusivo para cada lote de grãos, possibilitando que sejam rastreados por toda a cadeia de produção. Confira a reportagem neste link.

Então, diante de um cenário que está longe de ser ideal, como podemos nos posicionar por um consumo ético de chocolates? É necessário relembrar que, para saber se estamos consumindo produtos que são eticamente e sustentavelmente produzidos, é importante sabermos a sua origem. O “locavorismo” é um termo novo, que surgiu há pouco tempo mas que já movimentou diversas pessoas no Brasil, em busca de um consumo local! Basicamente, esse movimento determina que, quanto mais local seja o seu alimento, mais provável é que você conheça as práticas de produção que ele adota.

Infelizmente, não basta que o produto seja produzido no Brasil. Apesar do nosso país ser produtor da matéria-prima do chocolate, as fazendas de cacau brasileiras não fogem muito da realidade dos EUA: um relatório encomendado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), entre 2017 e 2018, afirma que pelo menos 8 mil crianças e adolescentes brasileiros trabalham na cadeia produtiva de chocolate. O estudo foi utilizado como ferramenta para promover uma parceria entre a CocoaAction Brasil e a OIT que lançaram, em 2020, o Plano de Ação Cacau 2030. Confira mais informações sobre essa discussão através do site brasileiro da Organização das Nações Unidas (ONU) neste link.

Onveg

O cacaueiro é uma planta nativa da Amazônia e, no Brasil, é cultivado em oito estados: Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. A Onveg, produtora de chocolates orgânicos, parceira do Meu amigo tem um sítio, é de Minas Gerais, mas utiliza dois tipos de cacau em sua produção: um deles é fornecido por um agricultor da Amazônia que mantém a simbiose com a natureza no cultivo, espécie que possui sabor frutado. O outro, originário da Bahia, é plantado por Ernst Gotsch, pesquisador suíço que criou a agricultura sintrópica e utiliza técnicas da agrofloresta para o plantio do cacaueiro.

Como explica Ramon, o cacau é produzido em consórcio com a natureza, sendo depois selecionado, passando pela fermentação, secagem à baixa temperatura e seleção das amostras. Só então passa pelo processo de produção das barras de chocolate, pastas e manteigas Onveg. “Quando a planta chega para nós, fazemos uma torrefação à baixa temperatura e com maior tempo, para que elimine aos poucos os ácidos que estão no cacau com maior intensidade. Diferentemente da indústria, que costuma moer o cacau em oito horas, o nosso chocolate demora cerca de cinco dias para ficar pronto porque é feito à baixa temperatura e de forma lenta em moinho de pedra, o que traz benefícios de sabor e nutricional, principalmente”, afirma. 

Para ele, a produção das grandes indústrias ignora o fato de que o cacau que utilizam é de má qualidade, plantado em larga escala e utilizando diversos químicos para mascarar esse fato. “A produção de chocolate no mundo foi muito monopolizada, durante muito tempo, nas mãos de grandes empresas que exploraram a produção de cacau de forma muito opressora e desigual. Hoje, a maior parte do cacau produzido no mundo vem da África, principalmente, onde utilizam diversas formas de trabalho infantil e análogo à escravidão. Eles trabalham dessa forma porque compram cacau de baixa qualidade e por um custo baixíssimo, fazendo uma padronização. Esse processo se chama alcalinização, quando se eliminam alguns ácidos do cacau para que ele tenha um gosto padronizado”, opina Ramon.

Para a Onveg, mudar a forma de se relacionar com a natureza é fundamental, mas também é necessário buscar mais ações para promover trabalho ético na indústria alimentícia. “É importante criar um ambiente de trabalho inclusivo entre os colaboradores, onde eles passam a fazer parte do processo e participem da tomada de decisão, dos testes e das reflexões sobre os produtos. A nossa intenção é trazer uma transformação através do trabalho que eles desenvolvem no Instituto Origem”, conclui. Mais do que se deliciar com os chocolates da Onveg sem culpa, vamos repensar o nosso consumo? É um tema urgente e que precisa ser tratado com sua devida magnitude, responsabilizando multinacionais que violam os direitos humanos e apoiando iniciativas de proteção do trabalhador rural.

Para se aprofundar:

Assista o documentário O Lado Negro do Chocolate, do jornalista dinamarquês Miki Mistrati, disponível no Youtube. Acesse neste link.