O que dizer sobre o ano que passou? De onde tirar forças para acreditar em um feliz ano novo? Reunimos as opiniões de um agricultor familiar, uma cliente de orgânicos e uma dirigente nacional do movimento agroecológico para nos ajudar a compreender o antes e o depois deste momento histórico para toda a humanidade.
“Deixemos o pessimismo para dias melhores; é preciso organizar a esperança”. A frase de Frei Betto parece muito oportuna para nosso momento histórico. Segundo a Secretária Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia, a agrônoma e escritora Flávia Londres, estamos vivendo “a conjunção de duas tragédias”. Para ela, “a pandemia acabou agravando problemas criados por um governo de extrema direita, que vinha destruindo as estruturas e instituições garantidoras dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, dos agricultores familiares e as políticas sociais”, analisa. Flávia diz que muitas políticas de apoio aos agricultores familiares foram interrompidas ao longo do ano e que o golpe mais duro foi em relação ao projeto de Lei 735, que previa apoio à agricultura familiar no contexto da pandemia, contou com uma grande articulação para ser aprovado no Congresso, mas acabou sendo vetado pelo Presidente Bolsonaro. “Este saldo foi de muito retrocesso e risco, pois se a agricultura familiar não tem apoio algum, isso impacta no abastecimento alimentar e alguns resultados já estamos vendo, como a alta do preço dos alimentos e não podemos dissociar uma coisa da outra”, lamenta.
Se por um lado o governo federal não apoiou a agricultura familiar e liberou um número recorde de agrotóxicos, a sociedade, de uma forma geral, começou a valorizar mais os alimentos orgânicos e agroecológicos, o que provocou uma alta demanda no setor. Apesar de ser uma notícia boa, esse aumento repentino também trouxe contradições para muitas famílias e comerciantes, como nos contou como nos contou Marc Weinberg, agricultor no Sítio Quaresmeiras, interior do Rio de Janeiro. Ele e sua companheira, Nicole Doerrzapf, estão à frente de uma produção diversificada de frutas orgânicas, transformadas em compotas e doces vendidos em feiras e em cestas de orgânicos como as do Meu amigo tem um sítio. “O aumento repentino da demanda estava fora do planejamento, o que fez nossa produção virar de pernas pro ar e nosso ritmo de vida também, o que é estranho, pois a gente mora no campo e trabalha com agricultura orgânica não é com fim de ter lucro e ficar rico”, diz Marc.
“Vamos apreciar cada minuto da nossa vida”, diz Marc ao lado da esposa, Nicole
O entusiasmo em proporcionar alimentação orgânica para mais famílias se misturou à ansiedade em conseguir atender subitamente tantos pedidos, o que evidenciou a histórica falta de investimento dos governos e da sociedade em outro sistema alimentar, que contasse com mais soluções de cadeias curtas e um número maior de fornecedores. Marc conta que diante da crise que já se anunciava no Brasil e a insegurança quanto ao que se esperar num cenário de pós-pandemia, eles acabaram topando a oportunidade para aumentar as vendas e passaram de duas entregas semanais para oito: “Nos desdobramos em mil pra atender a demanda e para nos precaver, o que acabou sendo um ano de muito trabalho e muito desequilíbrio psicológico, sem fim de semana… Acho que nosso primeiro fim de semana em casa com calma foi no mês de setembro”, relembra.
Na outra ponta, a publicitária que já consumia cestas de orgânicos desde 2019, também diz que se deparou com fortes contradições ao longo do ano. Sua principal surpresa foi se dar conta da quantidade de resíduos gerados: “Passamos a cozinhar mais em casa e vimos como estávamos gerando resíduos e como era essencial ter, por exemplo, uma composteira”. Suzana diz, no entanto, que esse nem era o principal problema, mas sim a quantidade de embalagens de tudo que se pedia pelo sistema delivery: “acho que todos nós nos demos conta de como tudo vem embalado em muito plástico e isopor, gerando muito lixo e começamos a valorizar ainda mais quando compramos nossos orgânicos e eles vêm em sacos de papel que podemos reaproveitar”, avalia, se referindo ao sistema do Meu amigo tem um sítio, empresa de cestas de orgânicos.
“O futuro começa em 2021”
Pela lente do otimismo e do aprendizado, Flávia analisa que a expressiva quantidade de ações de solidariedade envolvendo agricultores familiares é algo que deve ser celebrado: “Tivemos uma multiplicidade de iniciativas que brotaram da sociedade civil e envolveram a produção e o abastecimento olhando para as populações mais vulneráveis”.
Além disso, ela diz que a pauta da agroecologia, evidenciando como a comida de verdade é relevante para toda a sociedade ganhou visibilidade nos debates das eleições municipais e na sistematização de políticas públicas relacionadas à segurança e à soberania alimentar em todo Brasil: “Todas estas ações mobilizaram os grupos nos territórios e fortaleceram muito o movimento agroecológico”, comemora.
Suzana com sua família: “Tenho muita esperança”
Suzana também vê motivos pra comemorar: “Já mudei meus hábitos pra sempre e é muito bom saber que estamos comprando de um produtor pequeno, que tem cara, tem nome e precisa vender aquela produção pra sobreviver, não estamos falando de um grande latifundiário ou uma grande indústria”. E a palavra final pra ela tem a ver mesmo é com fé: “Me sinto bem em fazer parte deste outro tipo de cadeia, vi muita gente passando a pedir orgânicos e isso tudo me dá esperança”, resume.
Com esta mesma energia da mudança, Marc acredita que a principal esperança para o ano novo é que as pessoas repensem seu estilo de vida: “Desejo que se valorize mais o dia a dia, a saúde, o fato de termos sobrevivido a este momento histórico da pandemia e apreciar cada minuto da nossa vida”.