A verdade escondida por trás da vida no campo, muitas vezes, é assustadora: o desrespeito e a exploração são parte do dia a dia de trabalhadores rurais, que lutam para permanecerem produtivos, em um ambiente insalubre, com uso de químicos tóxicos, que podem levar até a morte. Com mais de 18 milhões de trabalhadores rurais, os riscos à saúde para o trabalho no agronegócio ainda são imensos.
Quando você pensa em vida no campo, talvez seu imaginário pinte lindas paisagens naturais, ou imagens de longas plantações, como aquelas feitas de cima pelas grandes emissoras de televisão. As cenas retratam lavouras intermináveis e terras produtivas, com alimentos que crescem em formatos e cores ditos “saudáveis”.
A verdade que está escondida por trás disso, quando nos aproximamos um pouco da realidade, é assustadora. Em um Brasil de desigualdades e de falta de acesso aos direitos garantidos por lei, dominado pelo agronegócio, já parou para pensar na condição de vida dos trabalhadores rurais?
No Dia do Trabalho, comemorado hoje, 1º de Maio, o debate sobre as condições de trabalho no campo precisa ser levantado. Atualmente, o Brasil tem mais de 18 milhões de trabalhadores rurais, segundo pesquisa do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, com base em dados da PNAD Contínua, do IBGE.
Grande parte destes trabalhadores é empregada pelo sistema de produção do agronegócio, sobretudo das monoculturas, que baseia-se em grandes propriedades e na utilização de maquinários e agrotóxicos para o cultivo.
Segundo Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, esta produção é, infelizmente, um modelo químico dependente. “Essa cadeia tóxica que se forma na produção de alimentos e commodities vai acabar chegando no consumidor de várias formas, seja através de um alimento pulverizado ou na contaminação ambiental, por quem mora em regiões próximas às plantações”, afirma.
Aplicado em grande quantidade, venenos como agrotóxicos e pesticidas são perigos invisíveis para trabalhadores rurais que passam anos em contato com os químicos. Produzido em 2014, o documentário “O Veneno está na Mesa” conta com depoimentos de diversas autoridades da área de agricultura e saúde. Antônio Santini, à época diretor-geral do INCA, é um dos entrevistados que comenta os riscos da exposição aos agrotóxicos.
“Os cânceres de bexiga, de rim, todos esses tipos, apresentam forte associação com a poluição ambiental, com agrotóxicos e, especialmente, com a contaminação por metais, substâncias presentes nos agrotóxicos”, disse. Em entrevista para o documentário, ele ainda afirmou que há uma complexidade extra em relação à legislação sobre agrotóxicos.
“Tem, de um lado, a Vigilância Sanitária que é um órgão ligado ao Ministério da Saúde e, de outro, os órgãos ligados ao Ministério da Agricultura, então tem objetivamente um conflito de interesse. Vai além da questão científica, ou seja, nem sempre as decisões governamentais são tomadas com base científica. Muitas vezes, são tomadas com base econômica também”
Mortes por intoxicação no país
Agricultor desde cedo, João Pimenta defende o uso de insumos naturais para o cultivo de alimentos. O produtor e parceiro do Meu amigo tem um sítio, que também é parte do Conselho Administrativo da Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO), relata que já viu muitos casos de intoxicação por agrotóxicos.
Os trabalhadores rurais que lidam com agrotóxicos sempre acabam sendo vítimas de intoxicação. Eu sou testemunha disso, vi pessoas que insistiam em usar agrotóxicos e hoje estão com sérios problemas de saúde neurológica e diversos tipos de câncer
João Pimenta
Ele relembra que, em uma região próxima ao seu sítio, produtores de um assentamento tiveram graves consequências para a saúde após utilizarem os químicos. “Infelizmente, a grande maioria ficou doente e vários morreram, justamente por estar usando agrotóxico. Não é historinha, é verdade! O sistema empurra as pessoas para isso. O agronegócio força a barra para que o agricultor acredite que isso é normal, então ele vai se intoxicando ao longo do tempo”, lamenta o produtor.
De acordo com a informação disponibilizada na Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde sobre agrotóxicos, os venenos entram no corpo por meio de contato com a pele, mucosa, pela respiração e ingestão.
Alguns dos sintomas da intoxicação aguda são náuseas, tonturas, vômitos, desorientação, dificuldade respiratória, sudorese e salivação excessiva, diarreia, chegando até coma e morte. No caso da intoxicação crônica, são notáveis distúrbios comportamentais como irritabilidade, ansiedade, alteração do sono e da atenção, depressão, dor de cabeça, fadiga, formigamentos, entre outros.
Residência em zonas de risco
Muitos casos de intoxicação por agrotóxico ainda não são notificados. Realizado em 2020, um levantamento inédito feito pela Agência Pública e Repórter Brasil, revelou que, na última década, 7.163 trabalhadores rurais foram atendidos em hospitais e diagnosticados com intoxicação por agrotóxico dentro do ambiente de trabalho ou em decorrência da atividade profissional.
Apenas 787 trabalhadores deste total tiveram a comunicação de acidente de trabalho (CAT) enviada ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A Repórter Brasil ainda afirma que, destes que tiveram a comunicação, somente 200 receberam auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez.
Os números fazem parte da base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. O levantamento ainda mostra que, no período de 2010 a 2019, ocorreram 45,7 mil atendimentos de intoxicações por agrotóxico em todo o Brasil, incluindo trabalhadores rurais e consumidores, 29,4 mil destes confirmados. Mais de 1,8 mil pessoas morreram por conta das substâncias.
Também não são poucos os casos de moradores de regiões rurais que acabam sendo atingidos pelo veneno. É isto que demonstra o artigo “Morte por agrotóxicos e mortalidade por câncer em regiões de monoculturas”, de autoria de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Ao analisar a produção de grãos como algodão, cana-de-açúcar, milho e soja, o estudo demonstra que o uso de agrotóxicos expõe a população que reside em locais próximos às lavouras ou da água contaminada.
Um estudo realizado no município de Lucas do Rio Verde (MT) demonstrou que 88% das amostras de sangue de residentes do município estavam contaminadas por glifosato e que 61% das amostras de urina eram positivas para, pelo menos, um tipo de inseticida organoclorado.
Escravidão moderna
Além da intoxicação pelas substâncias, que podem levar à morte em caso de exposição exagerada, os trabalhadores rurais enfrentam muitas outras formas de desrespeito e exploração, como o trabalho análogo à escravidão. Um estudo elaborado em 2018 pelo Observatório Digital do Trabalho Escravo, parceria entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), revelou uma terrível realidade: entre os anos de 1995 e 2018, foram realizados mais de 50 mil resgates de trabalhadores em condições degradantes de trabalho no país.
Parte destes casos está registrada na lista suja do trabalho escravo, organizada pelo Ministério do Trabalho, que em 2022 registrou 89 empregadores responsabilizados por escravizar 417 trabalhadores.
Nadando contra a maré
João Pimenta é um dos agricultores que nada contra essa maré, de produção baseada no uso do veneno. Aos 61 anos, com muita experiência na roça, ele diz que grande parte da responsabilidade é de um sistema de produção que ignora a agricultura familiar e defende somente a monocultura como forma de alimentar o país. “Entendo que o Brasil precisa ter sua economia aquecida, mas isso não pode ser feito a custo da população e do trabalhador. Eles querem colher em quantidade e, para isso, usam qualquer tipo de agrotóxico. De que adianta alimentar o povo com alimentos contaminados e, futuramente, não cuidar da saúde do trabalhador?”, questiona.
Apesar disso, ele acredita que ainda existem formas de mudar esse cenário. “É muito simples, os governantes precisam dar condições para o produtor. Hoje, nosso grupo não consegue produzir o suficiente porque não temos verba para comprar um trator. E essa mesma verba não é nada se comparada ao quanto se gasta em remédios, que precisam ser comprados pelos danos que os agrotóxicos causam na saúde”, diz. “Existem alternativas orgânicas que podemos usar para proteger a produção. Podem ser mais demoradas, mas funcionam. Pode ser que seja preciso diminuir a quantidade de produção, mas com certeza vamos aumentar a qualidade”, conclui.