Agricultores familiares comprovam que relações com menos intermediários trazem mais autonomia, constroem relações de confiança e podem ajudar a evitar crises alimentares em contextos como o da atual pandemia
Quando uma pessoa compra um alimento agroecológico em uma feira, uma lojinha de produtos naturais do seu bairro ou recebe uma cesta de orgânicos de uma pequena empresa em sua casa, talvez não tenha dimensão de quantas engrenagens ela está ajudando a mexer. O consumo de orgânicos no Brasil ainda está muito ligado à busca individual por saúde, mas cresce o número de consumidores para os quais uma outra ficha já caiu: a de que comprar de pequenos produtores com menos intermediários contribui para mudar os rumos de um sistema alimentar doente.
As compras que mobilizam até um intermediário entre produtor e consumidor são enquadradas no que se convencionou chamar de circuitos curtos de comercialização. O termo “curto” se refere, assim, muito mais ao contato do consumidor com o agricultor do que à distância geográfica. Apesar disso, as experiências de circuitos curtos demonstram que, geralmente, estas características coexistem, pois o mercado local facilita a distribuição, transporte e gestão das vendas. Estudos sobre estes modelos têm crescido na França, Inglaterra e no Brasil, sendo chamados também de circuitos alternativos, circuitos locais ou circuitos de proximidade. Independente da denominação, valores éticos e princípios como solidariedade, respeito à cultura local e preço justo são a base deste modelo de comercialização e vêm ajudando a agricultura familiar a conquistar sua autonomia.
O agricultor Paulo Roberto Lima de Andrade é a prova viva dos benefícios deste sistema. Filho de agricultor do Brejal, em Petrópolis, viu ainda adolescente seu pai mudar do sistema convencional para o orgânico, mas não conseguia enxergar o dinheiro chegando na mão dos pequenos produtores: “A gente vendeu muitos anos para grandes supermercados e o prazo para eles nos pagarem era sempre muito longo, de 45 dias ou até mais, o que ia gerando um acúmulo enorme de dinheiro a receber”, conta. Além disso, Paulinho, como é conhecido, conta que havia uma perda grande de mercadorias e que o contato deles nunca era direto com o supermercado: “A gente só conseguia chegar lá com alguém que fizesse a ponte e atravessasse a relação”. Essa pessoa citada por Paulinho é a figura do famoso “atravessador”, beneficiado mais que o próprio agricultor no sistema.
Dono do Sítio Solstício Agricultura Biológica, em Sumidouro, interior do Rio, o biólogo Renato concorda com Paulinho. Formado em Ecologia pela UFRJ, se mudou com 22 anos para o interior para ser agricultor e dono do seu próprio negócio, mas também penou frente às redes de supermercados: “A relação era muito desigual, o grande mercado está acostumado a lidar com empresas muito fortes e o produtor orgânico é pequeno, então cresciam muito quando negociavam com a gente e o nosso poder de barganha quase nulo”, relembra.
Renato na preparação para as entregas
O aspecto da negociação dos preços citado pelos agricultores é um fator importante nos circuitos curtos. Diversas pesquisas e estudos avaliam que estes sistemas proporcionam melhores preços para os agricultores, sob a lógica do preço justo, dando a oportunidade para que reconquistem controle sobre as vendas.
“A venda direta é totalmente diferente”, taxa Paulinho. “Primeiro porque você pega o dinheiro na cidade e ele já chega no campo, pois a venda é direta para o consumidor, o cliente do supermercado é do supermercado e o da feira é nosso cliente”, avalia. Renato vai na mesma linha: “A proximidade com a venda faz tudo ficar mais rápido e fácil, porque o papo é mais reto, seja com o cliente final em uma feira ou com um parceiro que está organizando as cestas, que normalmente são pessoas que nos entendem e olham para o lado do agricultor”, analisa. Para ele, as forças ficam mais equilibradas nestes circuitos curtos, mais amenas e até mais “prazerosas, pois se cria um laço de amizade, o que no mercado não é possível: lá a relação é fria”, compara.
A cura não para uma, mas para várias “pandemias”
O novo coronavírus e sua relação com o sistema agroalimentar dominante escancararam diversos problemas que podem ser encarados como enfermidades globais para a sociedade contemporânea. A obesidade – considerada de fato uma pandemia pela OMS e que já acomete um em cada cinco brasileiros -, junto com a pobreza, a fome e as mudanças climáticas, têm colocado em xeque a possibilidade do modelo alimentar convencional gerar saúde em larga escala e a longo prazo.
Para Renato Maluf, professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é inegável que corporações ligadas ao ramo da alimentação estimulam um modelo de consumo e de uso dos recursos naturais que leva, sobretudo, a problemas de saúde: “As iniciativas de abastecimento alimentar, em especial por meio desses circuitos, compõem uma das áreas que, na pandemia, permitem juntar a atuação para enfrentar emergências no acesso aos alimentos com a construção de possibilidades futuras”. De acordo com Maluf, que foi presidente durante anos do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, “o desafio maior é fazer com que elas avancem na articulação de agricultores familiares e a população de baixa renda ou das periferias”.
O professor Renato Maluf em evento sobre Segurança Alimentar. Foto: divulgação
Este desafio e o da permanência no tempo precisam, ainda de acordo com ele, de “apoio público”. Pesquisadores e integrantes de movimentos sociais também alegam que os governos podem atuar como importantes incentivadores dos circuitos curtos, ao conceder, por exemplo, benefícios fiscais para os pequenos mercados que comprarem diretamente produtos da agricultura familiar e da economia solidária ou ao incentivar a criação de associações e cooperativas para vendas diretas aos consumidores.
De fato, o associativismo entre os agricultores rurais ajudou a alavancar os circuitos curtos, como comprova Paulinho: “O nosso gargalo de venda era enorme, mas com os circuitos de feiras de orgânicos, os pequenos se tornaram grandes, pois nos unimos, pegando o dinheiro na cidade e trazendo direto pra roça”. O grupo que Paulinho faz parte, o GP Orgânicos, foi criado em 2009 e tem, hoje, em torno de 40 famílias. Para ele, o aumento das vendas diretas nos últimos 10 anos fortaleceu não só os pequenos produtores, mas a agricultura orgânica como um todo: “O pequeno produtor começou a ser empreendedor, a melhorar seus equipamentos de trabalho, a comprar uma enxada nova, comprar uma roçadeira para não usar mais a foice”, exemplifica.
Além de ajudar a desenvolver a agricultura familiar e os orgânicos, as rotas dos circuitos curtos levam as pessoas a refletir sobre o desperdício nas grandes redes de comércio e a dependência excessiva dos combustíveis fósseis, como ficou comprovado na crise de abastecimento durante a grande greve nacional dos caminhoneiros, em 2018.
Esse caminho promissor de alimentos mais frescos, com mais respeito à biodiversidade e às culturas do campo, precisa, no entanto, estar permanentemente sob monitoramento. Não basta que se fale que o circuito é curto, mas que se cultivem, na prática, relações de confiança e vínculos entre produtores e consumidores. E, nesses casos, cabe um pensamento já conhecido por muitos, de que quem caminha sozinho pode chegar mais rápido, mas quem caminha acompanhado pode chegar mais longe.