Além de uma técnica de plantio, as agroflorestas trazem uma visão de mundo inspirada na cooperação, capaz de oferecer respostas para diversos problemas planetários – começando pela crise alimentar – e cujos conceitos e práticas podem ser replicados em bairros urbanos ou até mesmo dentro de apartamentos
Nem só árvores, nem só comida, mas uma floresta de alimentos. Essa é a proposta principal da agrofloresta: cultivar uma diversidade de espécies em uma mesma área, podendo, inclusive, abarcar a criação de animais, sempre a partir da observação dos processos da natureza. O sistema não é novo, já foi identificado em inúmeras populações tradicionais e povos originários no mundo todo, mas nas últimas décadas vem ganhando projeção por meio da sistematização de sua metodologia e resultados, pelas redes sociais, mídias e projetos alternativos e por reunir soluções para inúmeros problemas gerados pelo modelo do agronegócio no campo.
“É como se a gente estivesse entrando em um templo”, diz Denise Amador, sem esconder o encantamento pela agrofloresta, da qual ouviu falar ainda na faculdade de Biologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em 1992. Denise fundou poucos anos depois com outros tantos jovens fascinados pela agrofloresta, o Mutirão Agroflorestal, uma das organizações pioneiras no Brasil para o estudo, sistematização e disseminação da prática do Sistema Agroflorestal, ou simplesmente “SAF”, como também é conhecida a floresta de comida.
No mestrado, Denise, ou simplesmente “Potô”, como é conhecida no movimento dos agrofloresteiros, fez uma revisão bibliográfica dos pesquisadores citados por uma das mais emblemáticas figuras da agrofloresta no país, a do suíço radicado no Brasil, Ernst Götsch. Apesar de ter ficado famoso dando consultorias e cursos em vários estados e em outros países, Ernst já declarou em entrevistas que gosta mesmo de ser reconhecido como agricultor. De fato, com seu esforço braçal, implementou agroflorestas na fazenda que comprou no sul da Bahia, na década de 90, e fez a propriedade recuperar com dignidade – em uma história igualmente emblemática – o seu nome original “Fazenda olhos d’água”, deixando pra trás o tenebroso título “Fugidos da terra seca”.
A maneira que Ernst encontrou para acelerar os processos da natureza dentro da agricultura abusa de técnicas objetivas como a poda e a cobertura vegetal, mas sua visão espiritual do processo está muito relacionada ao termo “templo” que Denise escolheu para se referir à agrofloresta: “A gente vai adentrando neste espaço e ao mesmo tempo acessa esta parte mais filosófica e espiritual de reconexão, de uma religação, em consonância com as leis da natureza, nos transformando em seres queridos no planeta, como nos traz o Ernst”, diz Potô. Segundo ela, o suíço despertou em muitas pessoas a atenção para o prazer interno e o amor incondicional que estão relacionados à prática da agrofloresta: “Nós começamos a enxergar que estamos atuando colocando cada vez mais vida na terra, deixando um rastro luminoso de qualidade e quantidade de vida no planeta”.
Em um mundo sedento por esperanças, a agrofloresta não só fala de reconexão e espiritualidade, mas traz também a questão social como fator imperativo para o sucesso da técnica. É neste ponto que o trabalho de Denise como educadora se encontra com o de Namastê Messerschmidt. Apesar do nome incomum, o rapaz de 33 anos é piauiense, filho de um alpinista alemão e uma brasileira. Assim como Ernst, Namastê tem ficado famoso dando consultorias e implementando agroflorestas nos quatro cantos do país. Sua última empreitada vem sendo acompanhada pelos internautas no perfil da apresentadora Bela Gil, que chamou Namastê para transformar um campo de futebol no seu sítio, na serra de Petrópolis, na tal floresta de comida. Apesar dos holofotes deste trabalho atual – segundo o próprio Namastê de extrema simbologia no “país do futebol” – o trabalho dele se consolidou ao longo dos anos junto ao MST e a projetos ligados à reforma agrária: “A Agrofloresta junta planta e o MST junta pessoas, então esta aliança tem sido muito sagrada e dado muito certo”, analisa ele. Para Namastê, apesar da agricultura servir para regenerar o solo, nos últimos tempos ela está caminhando em sentido oposto: “A agricultura convencional vem degradando o solo, não fazemos mais ‘terra preta de índio’, e eu particularmente acredito na tecnologia social, humana pra mudar isso”, avalia. Denise concorda: “A distribuição de terra e uma alimentação mais coerente, saudável e nutritiva são fatores ao redor acionados pela agrofloresta, relacionados às bandeiras da agroecologia”. Potô faz coro ao poder de transformação que o tema da alimentação tem e afirma que o momento é propício para enriquecer o debate: “Quem tem olhos para ver está apavorado com a crise ambiental e com a questão da saúde, sabendo dos venenos que vêm nos alimentos e da pobreza do que se compra no supermercado”, analisa.
Os urbanos e os grandes: agrofloresta de quem e para quem?
Presos em apartamentos ou donos de pequenas áreas de quintais em centros urbanos, muitas pessoas podem se perguntar como também se beneficiar e agir em prol de um sistema que se mostra tão encantador. Um passo importante, lembra Potô, muitos já deram a partir de questionamentos trazidos pela pandemia do novo coronavírus, que foi começar a comprar alimentos da agricultura familiar, essa por sua vez cada vez mais envolvida com a agroecologia e as agroflorestas.
A sala de aula de Namastê são os canteiros das agroflorestas
Namastê acredita que o ideal seria conseguir reverter o processo histórico de esvaziamento do meio rural no Brasil, levando mais pessoas de volta para “a roça”: “Sabemos que a vida no campo no Brasil nunca foi muito digna, com a concentração de terras, mas é preciso entender que este processo de tornar o campo cada vez mais consumista e a terra cada vez mais fraca e doente, não foi sem pensar, foi uma estratégia e por isso agora precisamos ser estratégicos também, levando pessoas pro campo e distribuindo as terras”.
Diante de um empreendimento de tamanha magnitude, o próprio Namastê oferece outras opções para começarmos: “Sabemos que fazer isso é difícil e que poucos têm um campo de futebol para transformar em agrofloresta, mas podemos trazer mais verde para as cidades, com mais alimentos, segundo os princípios da agrofloresta”, defende. Namastê explica que a ideia de um paisagismo sem comida reflete um conceito moderno criado na Inglaterra imperial, onde para demonstrar nobreza, as pessoas plantavam quintais somente com flores e árvores sem frutos: “Não tenho nada contra estas plantas, é importante tê-las também, mas é fundamental quebrar este paradigma do jardim estéril e plantar sempre comida junto, afinal tem coisa mais linda que um pé de banana roxa?”, indaga.
Potô segue a linha de raciocínio e diz que sempre será “favorável energeticamente se conectar com as plantas” e que possibilidades como hortas comunitárias, escolares ou em pequenas praças são muito ricas: “Quando a comunidade se reúne em torno do cuidar e de colher, temos coletivos bastante saudáveis, pra gente e pra terra também”. Enquanto dá um exemplo prático de como começar a partir de um único vaso, Potô desvela pontos fundamentais da agrofloresta: estratificação – que é a exigência de luz -, cobertura do solo, poda e consórcio de espécies de acordo com sua arquitetura. “Como nós, as plantas gostam de companhia, então você pode ter um hortelã mais rasteiro com a sombra de uma salsinha que por sua vez poderia até estar um pouco mais embaixo que um manjericão, depositando neste solo pedaços de podas de plantas e folhas que você recolha em algum lugar próximo”, ensina. A matéria orgânica é um ponto fundamental do processo, segundo ela: “A primeira coisa é ter um minhocário em casa, porque aquilo que é resíduo vai virando luxo, uma terra super rica e, ao alimentar as minhocas, vemos a transformação acontecer”, encoraja ela.
Quando saímos dos pequenos vasos e quintais para os grandes produtores de alimentos que vêm cultivando agroflorestas, inclusive investindo em maquinário adaptado ao sistema para a produção em larga escala, Denise e Namastê concordam que se trata de uma questão complexa: “Para empresas poluidoras, a agrofloresta realmente não tem nada a ver, mas para os grandes produtores de alimentos tenho uma visão crítica de observar se este movimento vai ser em cooperação com os pequenos ou vai competir com eles”, observa Denise. Namastê diz que mesmo quando falamos de grandes empresas, estamos em última instância falando de pessoas, “e pessoas vieram à terra para fazer o bem, então melhor que façam agrofloresta”, defende. No entanto, também deixa sua visão crítica: “a pergunta que devemos fazer é o porquê da própria pergunta de quem é a agrofloresta, pois por que precisamos de poucas pessoas produzindo grandes quantidades de alimentos se podemos ter muitas famílias produzindo ao mesmo tempo?”
Denise completa: “A agrofloresta traz em si princípios de muita cooperação, então precisamos levar isso para a sociedade humana; é necessário abrir os olhos e pensar como o ‘grande’ pode de fato favorecer o ‘pequeno’ nesta construção de agrofloresta, pois se estamos todos querendo a regeneração devemos nos ajudar”, conclui, com a esperança que é marca registrada de quem planta florestas de comida.