A relação da alta do dólar com o agronegócio está na dinâmica desse negócio, suas raízes na história brasileira e na política. Entender essa relação ajuda a explicar por que o aumento da moeda acarreta alta nos preços dos mercados.
- O impacto do agronegócio
- Políticas ambientais
- Alta no dólar
- Como os alimentos orgânicos burlam o dólar?
A relação do dólar com o agronegócio é clara, mas ao mesmo tempo complexa. Uma das marcas da gestão atual é o incentivo do governo aos grandes produtores, além de ataques às entidades de proteção ambiental. O desmonte dos órgãos ambientais e a impunidade para crimes ambientais são também acenos do governo aos seus apoiadores.
O impacto do agronegócio
Quando falamos de agronegócio, estamos pensando em gigantes da agricultura, da pecuária e do extrativismo. Ricardo Terzella, um dos sócios-fundadores do Meu amigo tem um sítio, é agrônomo e aponta que, nesse sistema, o negócio funciona como uma indústria moderna. A partir do alto uso de tecnologia (insumo escasso nacionalmente) e baixo uso de mão de obra, de forma que depende de recursos externos para a produção vegetal, como agrotóxicos e fitossanitários.
Agora, todo o agronegócio é favorecido pela alta do dólar no pilar das suas receitas. Isso porque produzem basicamente commodities, cuja cotação é mundial e, portanto, em dólar
Ricardo Terzella
Ou seja, apesar dos custos de produção também aumentarem com a alta do dólar, o faturamento aumenta proporcionalmente. Mesmo mantendo exatamente a mesma eficiência operacional, o ganho absoluto com a exportação dos produtos é maior quando o dólar está alto.
Se, por um lado, a economia nacional é movimentada por essa venda, por outro, a forte concentração de renda neste setor impede que o país mude o seu cenário de desigualdade. No interior de estados com muita produção agroexportadora, observamos níveis altos de desemprego (uma vez que o setor emprega pouca mão de obra por conta da alta tecnologia) e pobreza.
A insegurança alimentar, por sua vez, já atinge 55,2% dos domicílios no país e a insegurança alimentar grave (fome) afeta 19 milhões de brasileiros, segundo dados do Inquérito sobre a Insegurança Alimentar no Brasil no contexto da pandemia da Covid-19.
Parte deste aumento se dá pela inflação nos alimentos que compõem a cesta básica. Em julho de 2019, a fome no Brasil foi negada pelo presidente Jair Bolsonaro que, na ocasião, disse que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”.
Mas o fato é que o prato de arroz e feijão, considerado a base alimentar do brasileiro, demonstrou, entre abril de 2020 e agosto de 2021, o período mais prolongado de alta acumulada acima de 10%, dos últimos oito anos. Já é de 23,48% a alta acumulada em 12 meses até agosto nos preços dos dois alimentos. Os dados são do levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) a pedido do Valor.
João Pimenta, agricultor presidente do grupo de produtores SerOrgânico e membro associado do Conselho Administrativo da Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO), afirma que esse aumento impacta também os produtores orgânicos.
Aumentou tudo! E o produtor orgânico não tem condições de viver somente com o que produz, ele precisa comprar arroz, feijão, ter o que vestir, comprar gás… Então afetou muita coisa e os preços dos orgânicos não estão subindo, pelo menos o que estamos vendendo está mantendo o preço. E isso diminuiu muito nosso poder de compra porque você não ganha proporcionalmente e as coisas aumentam
João Pimenta
Políticas ambientais
Desde o início do governo Bolsonaro, a Amazônia tem ocupado o topo de noticiários ao redor do mundo. Queimadas e desmatamento são algumas das consequências da política ambiental levada a cabo pelo Ministério do Meio Ambiente que, logo em seus primeiros meses de poder, Bolsonaro ameaçou fundir com Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Apesar de ter voltado atrás em sua decisão, este anúncio foi um prenúncio dos “novos tempos” para a política ambiental. Em 2020, dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), obtidos pelo sistema DETER, demonstraram que o desmatamento na região foi o pior dos últimos 12 anos.
O ano de 2021 não foi diferente. O DETER registrou 8.793 km² de área desmatada na Amazônia desde agosto de 2020 a julho de 2021. Em abril, atingimos o pior índice para o mês já registrado no mês desde o início da série histórica em 2015. A título de comparação, a área desmatada de 580,55 km² equivale a 58 mil campos de futebol.
Em agosto, o desmatamento foi o pior para o mês em 10 anos, segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônica (Imazon). Foram desmatados 1.606 km² neste mês, totalizando uma área cinco vezes maior do que Belo Horizonte.
Alta no dólar
Quando os preços desses produtos disparam por conta da inflação, este é um movimento motivado por fatores climáticos, mas também porque a exportação torna-se mais rentável quando o real está desvalorizado, fazendo com que os estoques de arroz baixem, o que também acontece com a carne, por exemplo.
Quando o dólar atinge o valor de R$5,61 (cotação na data de publicação da matéria), isso significa que o real está valendo menos, o que aumenta o interesse dos países que importam alimentos no Brasil, sobretudo da soja.
No início da administração de Bolsonaro, um dólar valia R$3,70 e, apesar do ministro da Economia, Paulo Guedes, ter afirmado no início de 2020 que “o dólar alto é bom” e que até “empregada doméstica estava indo para Disney”, sabemos que o impacto deste aumento afeta muito mais do que as viagens internacionais.
Atualmente, enfrentamos uma inflação galopante e os produtos já não cabem mais no bolso do brasileiro, entre eles a gasolina. O dólar é só um dos vários fatores que afetaram o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), coletado pelo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Registrando prévia da inflação de 1,20% em outubro, a alta acima do esperado foi a maior taxa para o mês em 26 anos.
Segundo Ricardo Terzella, os preços internos aumentam com esse movimento. Alguns dos exemplos são alimentos como pepino, pimentão e abobrinha, produtos agrícolas que lideraram o aumento no IPCA, com altas de aproximadamente 60% a 80%.
Ele explica que o clima, neste caso, é um fator determinante, mas que esses alimentos costumam ser mais destinados ao mercado interno do que à exportação, de forma que o alto valor do dólar é repassado (quando os custos de produção aumentam) ao valor final do produto.
Já no caso das carnes, aí sim está mais intimamente ligado ao dólar. Esse já é um aumento mais perene, não está relacionado com sazonalidade de clima, e que tem impacto pelos dois vetores: tanto pelo repasse do aumento dos custos quanto pela contribuição das exportações como fator de escassez para o mercado interno
explica o agrônomo
O plantio de soja
A soja é um caso à parte neste cenário que merece ser explicado com mais atenção. Sendo um dos maiores produtos de exportação do país, quase a sua totalidade é transgênica, produzida com a tecnologia RR (Roundup Ready), ou seja, que se utiliza do herbicida Roundup para eliminar praticamente todas as plantas que entram em contato: semente, folha, caule e raiz.
A produção da soja deixou de ser feita a partir da capina química, não sendo mais usada a pulverização costal, muito menos a enxada. Com o RR, os banhos de herbicida são feitos com aviões, um método mais rápido e muito mais poluente, atingindo rios, matas e todo o tipo de biodiversidade que estiver pelo caminho.
O agronegócio, de um modo geral, é extremamente perigoso para o meio ambiente, uma vez que sua atividade se dá como resultado de uma interação íntima com os recursos naturais mas, como uma indústria moderna, faz isso com baixíssimo zelo – o mínimo exigido, quando muito; e zero devoção. São devotos do capital. Os sucessivos desastres ambientais na Bacia do Rio Doce, provocados sobretudo pela Vale (que já foi do Rio Doce, mas que rapidamente trouxe ao nome o desapego do meio ambiente, excluindo este de vista), são bem simbólicos de como o grande capital se relaciona com a natureza e com seus trabalhadores. Absoluto descaso. Tudo em nome do lucro aos acionistas
E, se não for para plantar soja ou criar gado, por que há tanto desmatamento? O aumento do território plantado já avança sobre biomas como a Amazônia e o Cerrado há anos. Para que a soja seja plantada, algo precisa sair do lugar: a floresta.
Ao invés de diminuir, o financiamento de commodities associados ao desmatamento aumentou 40% desde a assinatura do Acordo de Paris em 2015, segundo um levantamento da Forest and Finance. O Banco do Brasil é o maior credor de empresas com risco de desmatamento e, desde 2016, foi responsável por financiar US$30 bilhões, sobretudo para produção de soja e pecuária.
Como os alimentos orgânicos burlam o dólar?
No Brasil, o mercado de orgânicos ainda é pequeno e muitas vezes desvalorizado pelos consumidores, que nem sempre têm informação suficiente sobre o assunto, como explica Ricardo.
Quem mora na cidade não vê o que acontece no campo e, na correria do dia-a-dia, via de regra também não lê sobre. Isso afeta a precificação na medida em que a gente vive um esforço constante para conscientização, para trazer mais gente para esse mundo. Nesse sentido também o esforço para reduzir ao máximo o preço para o consumidor final
Já João Pimenta, produtor orgânico, aponta que um aumento de preços pode acabar afastando ainda mais os consumidores.
“A agricultura orgânica não aumentou o preço. Se nós aumentarmos, não conseguimos vender, então, acabamos optando por deixar de ganhar e continuar vendendo pelo mesmo preço”, diz.
Seu medo é que o movimento de busca por alimentação saudável (que aumentou o consumo dos orgânicos na pandemia) não seja suficiente para manter as vendas.
“Já percebi que está caindo e que as pessoas estão tendo dificuldade em manter o padrão de alimentação que tinham. Porque não é só a alimentação, se a inflação aumenta os outros produtos, a pessoa terá que cortar de algum jeito e sabemos que o mercado de orgânicos vai se impactar com isso”, lamenta o produtor.
A agricultura orgânica demanda menos insumos externos do que a convencional, mas ainda assim esses insumos existem e são necessários para o plantio. O setor acaba trabalhando com margens de lucro baixas para conseguir viabilizar a conscientização do público.
A variação do dólar ainda impacta o preço final do produto, entretanto este impacto é significativamente menor do que nos alimentos produzidos pelo agronegócio. “Vejo que os produtores e nós, assim como alguns outros revendedores, muitas vezes formamos os preços baseado nos custos e é comum mantermos o lucro como apenas o mínimo necessário para se manter, sobreviver, pagar as contas mesmo”, finaliza Ricardo.