A crise climática e alimentação orgânica estão intimamente relacionadas, com políticas públicas e alteração climática demandando novos hábitos. 2022 começou com grandes desafios: em meio a desastres ambientais com o crescente alerta de ambientalistas para a intensificação da crise climática, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei N° 6.299/2002, mais conhecido como Pacote do Veneno, que propõe medidas para flexibilizar a legislação sobre agrotóxicos.
Desastres ambientais, chuvas torrenciais, movimentos políticos, um bombardeio e ameaça de guerra na Ucrânia marcam o início deste ano. A sociedade civil se mobiliza para socorrer vítimas de um desastre natural que vitimou mais de 200 pessoas em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, em decorrência das fortes chuvas.
Apesar das advertências de ambientalistas sobre os desastres naturais estarem se tornando mais frequentes e destruidores por conta da crise climática, os governantes não propõem mudanças para mitigar os iminentes desastres. Há anos, ambientalistas se mobilizam para frear os danos causados pela exploração indevida dos recursos naturais e poluição do meio ambiente. Infelizmente, o alerta não foi suficiente para barrar mais um retrocesso político.
No início de fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei Nº 6.299/2002, conhecido como Pacote do Veneno. O pacote propõe medidas para flexibilizar a legislação sobre agrotóxicos.
Fazendo o movimento oposto, agricultores e consumidores de alimentos orgânicos seguem na busca de uma forma de produção e consumo sem agressão ao meio ambiente. O objetivo é estabelecer uma relação de conexão e respeito com a natureza, um dos princípios desta filosofia de vida, como explica o professor de agrofloresta Fernando Tanscheit.
A agricultura orgânica busca se aproximar dos ciclos da natureza, respeitando o período de chuvas, plantando os alimentos nos ciclos corretos da lua. A nossa ideia é vivermos integrados à natureza, ao contrário da agricultura tradicional que industrializa esse processo, não respeitando o meio ambiente
Fernando Tanscheit
Consequências da crise climática
Em 2021, a crise climática teve forte impacto ao redor do globo e deixou como herança diversas tragédias ambientais no Brasil. As catástrofes são confirmações de que o planeta está mudando e, com certeza, esquentando.
Há dois anos, uma área de mais de 3 milhões de hectares do Pantanal foi posta em chamas, e, juntamente às queimadas na Amazônia, o desastre fez com que o Brasil registrasse o maior número de focos de queimadas dos últimos 10 anos, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) de 2020.
A mudança climática é ocasionada por muitos fatores, mas, em 2021, um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas revelou que a mudança climática é definitivamente um impacto da atividade humana. De acordo com o relatório, desde a era pré-industrial o planeta ficou 1,07º C mais quente e a previsão é de que nos próximos 20 anos a temperatura do planeta aumente ao menos 1,5º C, caso siga no ritmo atual.
Os desastres naturais já atingiram o Sul da Bahia, cidades da Grande São Paulo e, ainda em 2022, Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Ocorrências graves e tão próximas demonstram uma intensificação da crise climática no país, como afirmam meteorologistas que defendem que o aquecimento global pode ser um dos responsáveis.
Reações ao Pacote do Veneno
Em meio a um cenário de caos ambiental, o projeto de lei 6.299/2002, que tramita no Congresso Nacional há 20 anos, foi posto para votação na Câmara dos Deputados em fevereiro e aprovado em regime de urgência. Agora, o texto segue para aprovação do Senado.
Em 2018, o Congresso Nacional foi considerado o mais conservador dos últimos 40 anos, tendo em sua composição uma maioria das bancadas evangélica, da bala e ruralista. Enquanto países de todo o mundo buscam diminuir o uso de agrotóxicos no campo, o Brasil caminha na direção contrária.
Além de diminuir a transparência em relação aos produtos que são usados, propondo o uso do termo “pesticida”, “defensivo agrícola” ou “defensivo fitossanitário”, suavizando a toxicidade das substâncias, o PL propõe que a aprovação de novos agrotóxicos seja feita pelos próprios ruralistas.
A proposta é que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não sejam mais soberanos na decisão sobre o registro de agrotóxicos, que ficaria sob a alçada do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Cerca de 30% dos agrotóxicos aprovados nos últimos cinco anos são produtos proibidos na União Europeia.
O uso de agrotóxicos está fortemente relacionado com o modelo de agricultura adotado no país desde o final da década de 90, o agronegócio. Esta forma de produção é baseada em grandes latifúndios e também em monoculturas de commodities, como soja, milho, algodão, cana de açúcar, entre outros.
Em entrevista exclusiva, Alan Tygel, membro da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, explica que esse modelo é dependente dos químicos.
Só funciona à base de muito fertilizante químico e agrotóxico, então essa cadeia tóxica que se forma na produção de alimentos e commodities chega no consumidor de várias formas. Pode chegar através de um alimento pulverizado, mas também pela contaminação ambiental de quem mora ou estuda em zona rural ou pelo abastecimento da água contaminada
Alan Tygel
Para Tygel, uma das formas de impedir essa contaminação é lutar contra o modelo do agronegócio.
Combatemos apostando na agricultura familiar, na agroecologia, incentivando a compra direta dos agricultores, para que a gente enquanto sociedade possa fortalecer essas redes de produção
Além da mudança nos hábitos de consumo, há também uma série de movimentos políticos que estão se mobilizando contra o Pacote do Veneno. A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida mobilizou quase dois milhões de pessoas em um abaixo assinado contra o PL, além de veicular amplamente as notícias sobre a votação.
A sociedade civil está dando uma mostra importante de que não quer veneno na comida e isso precisa ser ouvido pelos tomadores de decisão, que muitas vezes estão submetidos a interesses maiores das grandes corporações. Mesmo com a legislação avançada que temos hoje, chegamos ao posto de maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, além de termos uma quantidade muito alta de intoxicações por ano. Então se mesmo com a legislação atual chegamos nesse ponto, não queremos nem imaginar o que que vai acontecer quando essa legislação for desmontada
Tygel
Como os orgânicos podem mudar o cenário
No último ano, o mercado de orgânicos teve uma alta e foi o único que escapou do aumento no preço dos insumos por não utilizar adubos e agrotóxicos, de acordo com a Associação de Promoção dos Orgânicos (Organis). Mas, em 2022, o cenário é menos positivo. Ainda segundo a Organis, o setor movimentou R$ 6,3 bilhões no último ano.
“O mercado de orgânicos, com certeza, vai crescer bem menos do que no ano passado, que foi um ano fora da curva, quando atingimos um platô, com alta de 30%”, afirma o presidente da entidade, Cobi Cruz, em entrevista ao Globo Rural. Para 2022, a previsão não é de crescimento tão evidente, mas o setor é um dos que pode ajudar na diminuição da emissão de carbono e da poluição de mares e solo.
Sistemas que recorrem aos adubos químicos e agrotóxicos provocam instabilidade no ambiente e desequilíbrios na nutrição das plantas. O uso de agrotóxicos agride o solo e, de acordo com o professor Tanscheit, ainda promove a salinização, sendo necessário aumentar a quantidade de veneno utilizada a cada uso.
“Precisamos olhar para o nosso desenvolvimento e questionar se existe realmente um desenvolvimento sustentável dessa forma e nesse ritmo. Será que a conexão com a natureza está se dando através do processo de vida?”, questiona.
Melhora na relação com a natureza
O educador defende que, para entender a importância de mudar os hábitos alimentares, é preciso vivenciar a natureza. “Os processos que sustentam a vida do planeta Terra são participativos. Não estamos falando só de consumir, mas de participar e favorecer a diversidade no meio ambiente. Essa é a verdadeira agricultura tradicional, como é feita desde o início dos tempos, com conexão”, observa.
Mas esse movimento não é rápido e só pode ser feito passo a passo, como afirma Tanscheit. Para ele, é importante promover o debate desde a infância, através da educação.
“A palavra ‘húmus’, que utilizamos no solo para promover a fertilidade, tem uma origem em comum com a palavra ‘humano’, que vem da terra, do barro. Precisamos lembrar que o humano também vem da terra, assim como as plantas e animais que estão presentes na terra. Todos nós temos carbono! Somos parte da natureza e nossa relação com o alimento que vem da terra é milenar, mas de uns 70 anos para cá, com a industrialização da agricultura, os processos foram se perdendo”, comenta.
A busca da sociedade por uma alimentação mais saudável e sem veneno é uma esperança para o setor orgânico e para ambientalistas. Tygel afirma que, em 2018, quando houve uma tentativa de colocar o PL do Veneno para votação, houve forte resistência da sociedade civil. “Muitos deputados que apoiavam o Pacote do Veneno não se reelegeram. Por isso, a gente espera que nas eleições deste ano, muitos dos que se colocam a favor do PL também não sejam reeleitos. Temos bastante convicção de que os senadores e senadoras vão ser mais sensíveis, cautelosos e vão ouvir a voz da ciência”, diz.
E, em um ano eleitoral, cobrar uma posição dos candidatos é uma das formas de possibilitar mudanças políticas e de votar conscientemente. “Um terço do Senado vai ser renovado esse ano e a gente está se preparando para que a agroecologia e o combate aos agrotóxicos sejam colocados como pautas relevantes para o debate da sociedade nas eleições. Os candidatos e candidatas precisam se posicionar sobre o tema frente a seus eleitores para que o povo brasileiro possa escolher. Sabemos que o povo brasileiro pode escolher se quer comer veneno ou não e sabemos que ele não quer”, concluiu.